Merteuil Traída: Por que A Sedução Falha Onde Ligações Perigosas Sempre Venceu (recap episodio 1)

Sou, abertamente, muito fã do livro Ligações Perigosas, que li logo após ser impactada pelo filme — ainda perfeito — de 1988. O romance de Pierre Choderlos de Laclos foi escrito e publicado antes da Revolução Francesa, e sua proposta inovadora de narrativa epistolar não apenas era fiel ao espírito da época: era ousada, autêntica e profundamente desafiadora. Daí sua força quase 245 anos depois.

Hoje parece até corriqueiro — quase confortável — ter uma personagem feminina no centro da trama, ainda mais uma que confronta o patriarcado, que gosta de sexo e que transforma sedução em arma, prazer, vingança e tortura psicológica. A Marquesa de Merteuil nunca foi uma heroína, claro, porque nasceu da imaginação de um homem do século 18; em uma sociedade que só oferecia às mulheres sobrevivência ou submissão, seus métodos a transformavam na vilã perfeita. Mas Laclos fez algo raro: captou a essência de dilemas femininos com uma sensibilidade que antecipa debates modernos. Merteuil é uma mulher icônica em qualquer mídia — teatro, cinema, literatura. Eu poderia escrever sobre ela para sempre.

As versões definitivas — e as que jamais deveriam ter existido

Para mim, a versão definitiva continuará sendo a de Glenn Close, seguida por Annette Bening em Valmont, de Milos Forman. As demais — lamento, incluindo Patricia Pillar na adaptação brasileira — deixam a desejar. E isso vale, sobretudo, para as tentativas de “explicar” quem Merteuil era antes de se tornar Marquesa. A mais recente, que estreou esta semana na HBO Max, é… uma decepção monumental.

O erro fatal: transformar Merteuil em uma Cinderela dos bordéis

A trama já me incomodava desde o anúncio: mais uma vez, transformar Merteuil em uma jovem do povo que ascende socialmente como amante ou esposa, quando justamente seu “perigo” no romance era ser criada entre nobres e hipócritas, manipulando um sistema que conhecia por dentro e subvertendo regras como a sociopata refinada que era.

No livro, nunca sabemos o primeiro nome da Marquesa de Merteuil nem do Visconde de Valmont. Laclos não o faz por descuido, mas por genialidade: títulos e sobrenomes reforçam o jogo de máscaras, o anonimato social, o poder performado. Eles são personagens-conceito, construções, arquétipos — e nunca indivíduos íntimos.

Ao cair nessa armadilha e “batizá-los”, os showrunners modernos perdem a essência, destroem o mistério e achatam o simbolismo da obra.

A França do século 18 merecia melhor — e não mais um melodrama sem alma

A superprodução francesa na HBO Max parecia promissora. Afinal, excluindo a tentativa de Roger Vadim nos anos 1950, quase sempre foram adaptações estrangeiras que se destacaram. Nada mais natural supor que ninguém melhor do que os próprios franceses para ressuscitar a França decadente da monarquia às vésperas da queda. Engano meu.

A reconstituição de época é deslumbrante — seria estranho se não fosse. Mas a trama é confusa, sem originalidade, e transforma a derrocada de Valmont e Merteuil na idade adulta em uma repetição dos traumas juvenis. É uma simplificação rasteira.

Parte do escândalo original de Ligações Perigosas reside no fato de que Merteuil e Valmont não eram vítimas do sistema: eram predadores que escolhiam pessoas inocentes para destruir por puro tédio e perversão. Isso não era um “hábito” — era um evento extraordinário justamente por ser chocante. Se fosse rotina, não teria sido histórico.

O início da série: uma Cinderela vingativa e muita exposição de pele

A versão atual apresenta Isabelle Dassonville (Anamaria Vartolomei) entrando em um palácio e dizendo, em off, que a única liberdade que tinha — escolher com quem se casar — foi tirada dela. Voltamos então um ano antes, quando era órfã em um convento e é seduzida por Beaucaillou (Vincent Lacoste), um jovem que jura amá-la e se casa com ela. Só para, no dia seguinte, ela descobrir que tudo foi armação: ele é Valmont, um visconde que arquitetou um golpe com padre falso, nome falso, testemunhas cúmplices — tudo para deflorá-la.

Em dez minutos, vemos uma sucessão de imagens clipadas, suspiros, nudez sugerida, música pulsante — e pronto: sua motivação será a vingança. Com zero química entre o casal principal, diálogos rasos e um roteiro que parece o rascunho de um rascunho, Merteuil — A Sedução já entra na minha lista de piores de 2025.

A “ascensão” de Merteuil: mais superficial impossível

Diante das opções de virar freira, prostituta ou morrer, Isabelle diz que quer viver e procura Madame de Rosemonde (Diane Kruger), cúmplice do golpe, para aprender a usar sua beleza como “arma”.

No romance, Rosemonde é doce, religiosa e gentil. Aqui, é uma libertina sensual frustrada com o envelhecimento. Sim, nesse universo, todo mundo é podre — inclusive a família de Valmont.

Depois de um banho de loja, Isabelle chama a atenção do Marquês de Merteuil, mas Rosemonde quer usá-la para seduzir Gercourt (Lucas Bravo), o mesmo que mais tarde se casará com Cécile de Volanges. Isabelle pergunta por Valmont, mas Rosemonde manda esquecer — conselho que, claro, será ignorado.

Grandes cenas, grandes corpos, pequenos cérebros

Isabelle e Rosemonde vão à festa orgíaca de Gercourt. Valmont decide que vai seduzi-la de novo — uma prévia do que repetirá com Madame de Tourvel. Duelo, ciúme, violência, uma tentativa de estupro estilizada… tudo embalado como se estivéssemos em Bridgerton versão RedTube.

Quando todos celebram a retomada da suruba após o duelo, Isabelle foge correndo em câmera lenta. Depois, já casada e com título, escreve a Rosemonde pedindo para ser sua pupila. Agora é oficialmente a Marquesa de Merteuil — e quer aprender os prazeres da corte.

Uma série para quem acha que empoderamento é nudez e vingança

Se já assisto a outras séries na base do hate-watch, Merteuil — A Sedução entrou para a lista com honras. Mas me irrita especialmente perceber como o feminismo pode ainda ser usado para reforçar o patriarcado, transformando mulheres complexas em máquinas de trauma e vingança.

É, de novo, uma oportunidade perdida — e uma leitura equivocada de uma das personagens mais brilhantemente cruéis já escritas.


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