Os Donos do Jogo é uma daquelas séries que chegam ao streaming já carregadas de expectativa, e no caso da Netflix isso sempre vem acompanhado de uma pergunta essencial: o Brasil está prestes a entregar mais um produto que conversa com o mundo ou vamos assistir a um fenômeno essencialmente doméstico? A verdade é que a série de Heitor Dhalia acaba ocupando um espaço intermediário — mas ainda assim muito significativo — porque, para além da trama sobre o jogo do bicho, ela se apresenta como uma leitura elegante e amarga sobre o próprio país. É esse comentário social pulsante, aliado a uma estética ousada e a performances seguras do elenco, que explica não só sua repercussão imediata, mas também o fato de a plataforma já ter confirmado uma segunda temporada.

O que sempre me atrai nesse tipo de narrativa é a sofisticação silenciosa: a maneira como a ficção se amarra ao real sem precisar levantar bandeiras óbvias. O Rio que vemos em Os Donos do Jogo é distorcido, quase distópico, mas também é absolutamente reconhecível, porque reflete um Brasil que vive apostando tudo o tempo inteiro — na política, na sobrevivência, nas relações. A série não recria o submundo do bicho por fetiche, mas por metáfora. É um tabuleiro moral, urbano e emocional que existe para nos lembrar que, para muitos, viver é um jogo de risco. E essa ambição estética, tão visível em cada quadro, rendeu elogios imediatos: direção firme, fotografia surpreendente, ritmo visual que remete a produções maiores. É aquele tipo de série que as pessoas descrevem como “não parece brasileira”, e isso, no fundo, revela mais sobre o preconceito estético de quem assiste do que sobre a obra.
O elenco também sustenta o impacto. André Lamoglia entrega um protagonista inquieto e cheio de camadas, enquanto Mel Maia e Giullia Buscacio fogem do arquétipo das mulheres orbitando homens violentos e se tornam agentes reais da narrativa. Há força e vulnerabilidade, ambição e contradição, e isso ajuda a preencher o espaço onde a série poderia ter escorregado. Não escapa, claro, das comparações inevitáveis do gênero — todo drama criminal corre o risco de parecer familiar — e Os Donos do Jogo às vezes tropeça exatamente aí. A estrutura é conhecida, o arco da ascensão e queda continua sendo uma fórmula segura, alguns personagens secundários ficam subdesenvolvidos. Mesmo assim, quando a série aposta na tensão contida, nos diálogos ferozes e na crítica social, ela brilha.
É curioso observar como a repercussão popular foi ainda mais forte do que a crítica especializada. Mais de 600 mil menções nas redes em poucas semanas mostram como a série capturou o imaginário, especialmente entre o público jovem. Virou meme, virou referência estética, virou debate moral. E isso diz muito sobre por que a Netflix não hesitou em confirmar a continuação. A série não apenas funcionou: ela rendia conversa, que é a moeda de ouro do streaming hoje.

A pergunta sobre o impacto internacional também merece nuance. Os Donos do Jogo não se tornou um fenômeno mundial nos moldes de La Casa de Papel ou Elite, mas se destacou sim fora do Brasil. Entrou em tops regionais em diversos países, especialmente mercados que já consomem dramas latinos, e chamou atenção pela produção refinada. Em fóruns estrangeiros, o comentário recorrente é exatamente esse: a fotografia impressiona, o Rio filmado como uma cidade de neon e sombras intriga, e a história parece suficientemente exótica e universal ao mesmo tempo. É o que chamo de “global sleeper”: aquela série que não explode, mas se sustenta e vai sendo descoberta organicamente.
Claro que nem tudo são flores. Há quem critique o ritmo irregular e a tentação constante da glamurização, dilema eterno das narrativas criminais. A série por vezes estiliza tanto seu universo que corre o risco de suavizar o horror que pretende expor. E, ainda assim, esse paradoxo é parte natural do gênero — inclusive nas produções internacionais mais premiadas.
O fato é que Os Donos do Jogo alcança um equilíbrio raro: é popular sem ser rasa, é estilosa sem ser vazia, é brasileira sem pedir desculpas por isso. E o mais importante: abre caminho para um segundo capítulo que pode ousar ainda mais, agora que a série já se estabeleceu e conquistou espaço, tanto dentro quanto fora do país. A confirmação da segunda temporada não é apenas um sinal de sucesso — é o reconhecimento de que essa história, com todas as suas contradições, tem fôlego para continuar apostando alto.
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