“Malice”, em inglês, significa malícia, mas não no sentido brincalhão do português; significa intenção de fazer mal, dolo, desejo deliberado de causar dano. Em português, temos palavras próximas — “má-fé”, “perversidade”, “ruindade premeditada” —, mas nenhuma captura exatamente o veneno frio do termo original. E talvez por isso Malice, a série britânica criada por James Wood para o Amazon Prime Video, chegue tão carregada de desconforto: ela abraça o significado mais sombrio do título e o transforma em narrativa. Aqui, ninguém está seguro. E ninguém está exatamente certo.
Malice é uma série que veio para incomodar. É claramente herdeira de filmes como A Mão que Balança o Berço, com suas tensões domésticas, falsos confortos e a ideia de que o perigo pode entrar pela porta da frente sorrindo. Tem também o perfume venenoso da vingança meticulosa de O Conde de Monte Cristo, o jogo psicológico identitário de O Talentoso Ripley e até a sátira de privilégio e vaidade do incômodo Greed (2019), com Steve Coogan — este, aliás, talvez o primo mais próximo no espírito. Todas essas obras lidam com uma mesma ideia: a destruição pode começar pequena, civilizada, quase educada, até que se torna irreversível. Malice bebe dessa fonte — e torce o argumento até o limite.

A história: quando o inimigo está dentro da casa
O ponto de partida é simples demais para não ser ameaçador: um homem é contratado como nanny por uma família rica. Ele sorri, se mostra prestativo, parece perfeitamente ajustado ao que os Tanner precisam naquele momento. Ninguém percebe — ou quer perceber — o que está escondido por trás da neutralidade polida de Adam Healey (Jack Whitehall). A série não perde tempo em sugerir que há algo errado. Mas o horror verdadeiro está na lentidão: sabemos que ele está arquitetando algo, mas não sabemos quando ou como começará a doer.
E dói.
Adam não é um vilão explosivo. Ele é metódico. Observa, infiltra-se, entende as vulnerabilidades de cada membro da família — a exaustão emocional de Nat (Carice van Houten), o ego inflamado de Jamie (David Duchovny), a carência infantil dos filhos, as rachaduras sociais e afetivas ao redor. Aos poucos, constrói-se uma sensação de inevitabilidade. Tudo é uma peça no tabuleiro. Tudo é preparação para algo maior, sempre fora do campo de visão da vítima.
A partir de certo ponto, não resta dúvida: Adam está ali para destruir. E não destruir abstrações — destruir pessoas.
O alvo principal?
Jamie Tanner.
Um homem poderoso, carismático, influente — e, sobretudo, alguém cujo comportamento moralmente questionável oferece combustível perfeito para o tipo de vendetta silenciosa que Adam conduz. A série não tenta purificar Jamie, e isso é fundamental: Malice não é sobre inocentes e culpados. É sobre danos, traumas, egos inflamados, oportunidades desperdiçadas e o prazer perigoso que vingança pode oferecer para quem se sente injustiçado.
Quando finalmente entendemos a profundidade da motivação de Adam, já é tarde demais. Ele destruiu tudo: reputação, casamento, saúde mental, finanças, moral — e a si mesmo, de certa forma. É uma vingança total, absoluta, calculada e sem misericórdia.
E o mais incômodo?
O público assiste tudo sabendo que está observando um predador — mas sem conseguir torcer pelas presas.
Os bastidores de uma série construída na tensão
Criada, escrita e produzida por James Wood, Malice é uma obra de controle total. Wood assina TODOS os episódios, garantindo coerência psicológica e uma cadência narrativa que funciona como um dominó cuidadosamente enfileirado. Os diretores Mike Barker e Leonora Lonsdale trabalham essa quietude visual com precisão: a série é fria, silenciosa, elegante e sempre, sempre um pouco desconfortável.
Filmada entre fevereiro e julho de 2024, em Londres e Paros, Malice usa a geografia como contraste. Londres é o palco do claustro emocional; Paros, o cenário da falsa tranquilidade — o tipo de beleza que existe apenas para ser brutalmente perturbada.
E o elenco é decisivo para esse efeito.

Jack Whitehall: o choque da sociopatia sem charme
Para quem conhece Jack Whitehall pelo humor — autodepreciação, timing leve, persona acessível — vê-lo como Adam é perturbador. Ele não transforma o personagem num charme disfarçado de maldade, como muitos vilões contemporâneos. Ao contrário: sua sociopatia nunca pede empatia. Adam é frio. É estudado. É funcional. Não há trauma que o redima, não há piscadela que o humanize.
E justamente por isso, ele convence.
Whitehall entrega um vilão que não quer seduzir o público; quer apenas cumprir um plano. Isso é muito mais assustador.
David Duchovny: o homem cancelável que já conhecemos
Do outro lado, David Duchovny interpreta Jamie com uma familiaridade desconcertante. Ele é o tipo de homem cuja autoconfiança é tão antiga quanto seus erros — charme demais, poder demais, consciência de menos. É o arquétipo do “homem cancelável” que acredita estar sempre no controle, mesmo quando não está mais segurando as rédeas da própria história.
Duchovny habita esse tipo de personagem há anos, e aqui ele parece se divertir com o desconforto. Jamie é vulnerável, mas não inocente. Imperfeito, mas não repulsivo. Um homem que desperta antipatia e empatia ao mesmo tempo — o tipo de vítima que não sabemos se queremos ver protegida ou exposta.
Essa ambiguidade é o coração de Malice.
O núcleo feminino (e o que não vemos)
Carice van Houten entrega uma Nat Tanner cheia de camadas — cansada, sóbria, inteligente, vulnerável e orgulhosa. Christine Adams e o restante do elenco orbitam essa dinâmica com força, mostrando uma família que parece sólida, mas está sempre a um passo do colapso.
Malice entende bem o que muitas séries falham em captar: famílias ricas não quebram em crises gigantes. Elas quebram em microfissuras constantes, que vão sendo ampliadas por quem sabe onde pressionar.
Adam sabe.

O desconforto como espetáculo
Malice é uma série montada para provocar inquietação. Não há conforto moral, não há catarse fácil, não há “lado certo” para abraçar. A sociopatia de Adam jamais nos conquista, mas a família Tanner também não oferece um porto seguro para o espectador. Todos têm suas falhas, suas zonas cinzentas, seus segredos — e é nesse terreno instável que James Wood constrói seu thriller.
No fim, o que fica é a sensação de que assistimos a algo perigoso: uma vingança que não busca justiça, mas destruição. Um predador que não desperta carisma. Uma vítima que não é inocente. Um casamento que desmorona por dentro antes de ruir por fora.
E uma série que usa cada um desses elementos para lembrar que, na vida real e na ficção, malice — a intenção de causar dano — raramente vem de onde esperamos.
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