Igor Verde: do terreiro ao Berlinale, a força de uma narrativa que nasce da escuta


Como publicado na Revista Bravo!

Há artistas cuja trajetória parece seguir uma linha reta até o protagonismo. E há outros que chegam ao centro da indústria carregando mundos — memórias, cantos, histórias, saberes — que antecedem qualquer câmera ou sala de roteiro. Igor Verde pertence a esse segundo grupo. Antes de entrar na PUC, antes de trabalhar na Globo, antes de estrear uma série no Berlinale, ele aprendeu a escutar e a narrar dentro de um terreiro no Complexo do Alemão. Foi ali que entendeu que contar histórias é, antes de tudo, um gesto de alinhamento: entre o indivíduo e seu destino, entre o corpo e o mundo, entre o presente e seus ancestrais.

Hoje, com passagens pela Globo, Netflix, Prime Video, Disney e HBO MAX, com um Jabuti no currículo e uma série que irrompe no debate sobre identidade, necropolítica e pertencimento, Igor ocupa um lugar raríssimo: o de um criador capaz de transitar por todas as telas sem abandonar a pergunta fundamental que move sua obra. Quem somos: como indivíduos, como nação, como coletivo? E o que fazemos com as narrativas que herdamos?

Nesta conversa, Igor revisita essa caminhada — do terreiro ao mainstream — e fala sobre arte, política, afeto, indústria, responsabilidade, ancestralidade e sobre o Brasil que insistimos em construir. Mais do que respostas, ele nos oferece modos de olhar.

Bravo! – Você comenta que aprendeu a ouvir histórias no terreiro, muito antes do cinema. O que do oriki — essa tradição de memória e identidade — ainda guia suas escolhas como diretor hoje?

Igor Verde: Oriqui é uma palavra polissêmica, diversa em sua função dentro da língua. Ela descreve, de alguma forma, a literatura iorubá. Por outra, são os versos, as histórias ligadas aos ancestrais, aos Orixás. Mas, acima de tudo, é uma forma de apaziguar o Ori de uma pessoa, fazer essa cabeça relembrar seu pacto com Opiori, essa essência maior. Acho que é isso que mais guia minhas escolhas: contar histórias que reconectem o Ori com o Odú, a cabeça com seu destino, que alinhem o humano com o mundo. Como fazer isso em um ambiente de capital? Esse anda sendo o meu maior desafio.

Bravo! – “Reencarne” nasce de uma pergunta essencial: quem sou eu? Em que momento você percebeu que a série tinha que existir agora, no Brasil de 2025?

Igor Verde: Na verdade, eu esperava que a série existisse antes, mas diversos motivos nos trouxeram até 2025. Essa é a pergunta essencial do Brasil: quem somos nós? A identidade é sempre superfície, é construção, não é algo dado. Entender esse eu profundo — esse Self junguiano — é crucial para compreendermos nossas identidades e respeitarmos a diversidade. Só com esse respeito poderemos construir uma identidade nacional capaz de abarcar a enorme pluralidade deste país. E precisamos urgente construir essa cara.

Bravo! – Sua trajetória passa por Globo, Netflix, Prime Video, Disney, MAX. Como cada uma te moldou — e o que cada uma te permitiu contar?

Igor Verde: A Globo me ensinou a dimensão do Brasil. É ainda a tela onde o país se vê e onde devemos batalhar para manter relevância. Lá posso contar o drama nacional ou ser muito inovador dentro da brasilidade. A Netflix me ensinou o método do streaming e o uso — e abuso — dos dados. Trabalhar com dados é ler o público, mas também pode ser uma forma de se enganar. Muitas vezes é preciso desobedecer para surpreender. A Disney foi um processo de muito conflito. A cadeia de decisão é estrangeira, e garantir que corpos negros não virassem produtos foi central. Mas é uma tela que alcança um público que raramente tocamos: homens jovens, fãs de esporte, um Brasil pouco ouvido. A HBO MAX tem no DNA a busca pela série-arte, com maior liberdade criativa. Mas sempre há o risco de esquecer que o artista serve ao público, não ao próprio umbigo. Essa pergunta me fez pensar que eu adoraria que a Apple produzisse no Brasil. Eles têm um bom equilíbrio entre público, valor de produção e um foco em sci-fi que me interessa muito. Quem sabe um dia.

Bravo! -Você vem de um território atravessado pela resistência e pela ausência do Estado. Como lida com a responsabilidade — e a carga — de representar essa vivência?

Igor Verde: Responsabilidade é capacidade de responder à situação. Tento estar atento: ao mundo, ao lugar de onde vim, aos meus ancestrais. Não vejo isso como carga. Eu gosto de ter nascido onde nasci, é o que me formou. O mercado não quer ouvir narrativas, quer ler planilhas. Faz parte. Contar histórias dentro de uma indústria de capital massivo exige negociação. Minha função é negociar, compreender e criar soluções que permitam histórias relevantes e acesso mais diverso. Meus avós foram escravizados nos anos 1940 em Minas. É o trabalho e o sangue deles que me colocam aqui agora, respondendo perguntas e sendo ouvido. Não é um peso. É um processo histórico do qual faço parte com orgulho.

Bravo! – Após mais de uma década na indústria, você criou o Coletivo Cata História. Qual a importância dessas redes de afeto e autonomia criativa?

Igor Verde: A criação floresce com afeto. Criar sob opressão, assédio ou controle não é possível. Essas redes são cruciais para criar, compartilhar e contar histórias. Contar histórias é um ato de afeto coletivo.

Bravo! – Você dirigiu “Mania de Você” às 21h e, ao mesmo tempo, lançou uma série sobre identidade profunda. O que essas experiências te ensinaram sobre público e narrativa?

Igor Verde: Primeiro, que o público é uma entidade diversa e imprevisível. Ninguém sabe exatamente o que ele quer. Narrar é sempre convidar para uma dança às cegas. Você chama — se ele vem, se gosta, se fica… isso não está sob nosso controle. Isso que muitos acham angustiante, para mim é divertido.

Bravo! – Muito se fala de representatividade. Para você, que trata pertencimento como ferramenta política, qual é o próximo passo?

Igor Verde: O próximo passo é transformar a subjetividade. Não é só ser representado, é ser ouvido, visto, ter poder de transformação. É pensar em mudanças estruturais: que um trabalhador de salário mínimo possa alimentar sua família; que haja terra para plantar; que não romantizemos chacinas. Representatividade como totem falhou. O que as maiorias silenciadas merecem é poder real: escolher para onde vai o dinheiro, escolher políticas de prosperidade. É um caminho longo, e talvez eu não veja isso se concretizar, mas precisa ser construído.

Bravo! – “Reencarne” critica a necropolítica. Como você sente essa responsabilidade — especialmente vindo de onde você vem?

Igor Verde: A necropolítica é um dos elementos mais nefastos da contemporaneidade. Mbembe nomeia uma trapaça terrível: as elites escolhendo quem vive e quem morre. Podemos aceitar isso cinicamente ou enfrentá-lo frontalmente. E isso me mobiliza profundamente. Minha mãe faleceu semanas atrás, depois de presenciar uma chacina na porta de casa, no Alemão. A necropolítica bate às portas, gera medo, e é esse medo que permite exploração. Conto histórias também para formar em mim — e nos trabalhadores deste país — uma força para superar esses medos e construir um ambiente onde o desejo de viver seja maior do que o desejo de matar ou morrer.

Bravo! – Mesmo sem redes sociais, sua obra cresce. Como navega essa contracorrente em um mercado obcecado por performance pública?

Igor Verde: Com tempo para escrever, ler, observar, viver. Estamos obcecados por nos expressar, mas precisamos voltar a nos impressionar. No fim, não há prêmio, crédito ou obra que importe mais do que a vida. Só há a partilha de afeto e beleza entre humanos. Isso basta.

Bravo! – Quando olha para trás — do terreiro ao Berlinale — qual é a pergunta que ainda te move?

Igor Verde: Quem é esse que cria em mim e que eu vejo em ti?


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