Como publicado na Revista Bravo!
Renata Di Carmo fala com a serenidade de quem sabe o peso e a potência de ocupar o próprio espaço. Pioneira entre mulheres negras nas principais salas de roteiristas da televisão brasileira, ela construiu uma trajetória que desafia rótulos e amplia horizontes, entre o teatro, a TV, o cinema e a literatura. Atriz desde a infância e roteirista desde o fim dos anos 1990, Renata fez história ao assinar projetos que atravessam gêneros e linguagens, sempre com a mesma motivação: narrar para existir.
Com passagens por produções como Humor Negro, Cidade de Deus: A Luta Não Para e Os Quatro da Candelária, e prêmios que celebram sua contribuição criativa, Renata segue abrindo caminhos e questionando estruturas. Em No Jogo, reality criado para o Universal+, ela idealizou um formato que une arte, propósito e inclusão, selecionando novas atrizes negras para a série (in)vulneráveis), em que também atua. “Vi a chance de construir um projeto onde o que se vê na tela também se reflete nos bastidores”, diz.
Na conversa com a Bravo!, Renata revisita o início da carreira, fala sobre o teatro como primeiro espelho de pertencimento, analisa os desafios e as conquistas de mais de três décadas de criação e propõe algo essencial: reimaginar o Brasil a partir de quem o conta. “Escrever é uma forma de reconhecer o país, com sua gente, suas dores, suas belezas e contradições. É sobre caber — e fazer caber mais pessoas — dentro das histórias.”

Bravo! – Você começou muito cedo no teatro e se tornou pioneira como autora-roteirista negra na TV brasileira. Quando olha para essa trajetória, qual foi o momento em que entendeu que sua missão era contar histórias — e não apenas fazer parte delas?
Renata: De alguma maneira, essas pontas sempre estiveram alinhadas na minha cabeça. Eu sempre tive uma capacidade de produzir imaginários e eu os contava de muitas maneiras. Antes de entrar para o teatro eu costumava escrever bastante, desenhar e pintar. Era como conseguia me expressar. Quando descobri o teatro, eu me identifiquei com aquele lugar, com aquele espaço, com a possibilidade de ser e estar sensível ao que me atravessava, era uma maneira de lidar com as minhas questões. O primeiro espetáculo que eu assisti na vida foi a peça “Pluft, o fantasminha”, de Maria Clara Machado, e eu fiquei encantada com aquele mundo mágico acontecendo na minha frente, com aquela possibilidade de conexão, de envolvimento absoluto. Eu ainda era criança, mas lembro de uma sensação que era um misto de abstração e de reflexão, ao mesmo tempo.
Bravo! – Quando você volta para essa memória de Pluft, hoje, dá para dizer que ali já havia uma leitura, ainda intuitiva, sobre pertencimento e sobre quem pode ocupar o centro da história?
Renata: Há uma frase muito emblemática para mim, que me conectou com aquele universo para sempre. Pluft dizia “Mamãe, eu tenho medo de gente”, e eu me identifiquei tão profundamente com aquilo. Entendi que aquele espaço, o teatro, eu o queria. Ao mesmo tempo, para além da frase que parece inocente, mas não foi pra mim, eu me identifiquei com Pluft, e não com Maribel, a menina da história. E isso dizia, e diz, muito sobre os atravessamentos da experiência negra no mundo. Era assustador, e é, ter medo de gente, da mesma maneira que espelhar a sua vivência em uma não-existência. Se analisarmos bem, eu estava me identificando com um fantasma. Mas bem, ele também era o protagonista da história. Dupla entrada.
Bravo! – E em que momento essa menina que se reconhece no fantasma começa a entender que atuar também é uma forma de escrever o mundo com o próprio corpo?
Renata: Acredito que para mim sempre foi sobre contar histórias, sobre inscrição no mundo, embora no início, isso comece a aparecer mais profissionalmente, integrando elencos. E ser atriz é uma maneira importante de contá-las, você escolhe o “como”, no final das contas. É o seu corpo, suas expressões, suas entonações, sua força. Quando eu começo a escrever profissionalmente, eu tinha algumas demandas: gerar renda pra eu pudesse continuar sendo atriz, pra que eu pudesse permanecer no meu exercício artístico; exercer a criação sendo exatamente quem eu era; me reconhecer nas narrativas, já que o que eu mais ouvia era que eu era excelente, mas não havia papel pra mim. Escrever então passa a ser uma forma de reconhecer o Brasil, com a sua gente, as suas complexidades e variedades, belezas e sutilezas, com as dores, afetos e incoerências. Acho que não entendi o momento exato em que me vi autora, eu existi. Existindo, eu precisava ser quem sou, e fui fazendo meu caminho.
Bravo! – Sua frase “quem conta as histórias muda o final” resume bem o seu trabalho. Que finais você sente que conseguiu mudar até aqui e quais ainda quer transformar?
Renata: Um conjunto de ações e existências de uma sequência de gerações, de movimentos, de pessoas, vão mudando as coisas. A nossa história é feita a muitas mãos, existem muitas gerações de nós que passaram bastões, que lutaram, que foram esmagadas pelo sistema, que foram invisibilizadas, silenciados, que fomentaram e pavimentaram um caminho. Por isso também é fundamental que a gente narre, para que exista registro dessa caminhada.
Bravo! – Quando você decide escrever, o quanto essa consciência de ancestralidade e de bastão passado pesa nas escolhas que você faz na página?
Renata: No meu caminho, senti a necessidade de investir na criação de narrativas onde o mundo fosse também um lugar possível para mim. Havia uma insistência e uma provocação em mim, de que, sim, cabemos em qualquer narrativa, já que existem experiências e vivências inúmeras habitando a Terra. É cansativo ter de seguir explicando o básico. Como atriz, eu me senti limitada quando me diziam que os personagens não eram para mim, mas eu sentia que eram. A questão é que a nossa corporalidade carrega uma história, ela narra por si só, no entanto esse corpo de mulher negra não foi parido na experiência do Atlântico. Entende? Tentei ampliar as perspectivas com os projetos que fiz, como pude, já que quando escrevemos não estamos apenas registrando um tempo ou rememorando um tempo passado, estamos também alargando as visões sobre esse passado.
Bravo! – Você fala muito da produção de imaginário. Na prática, o que significa, para você, “mudar o final” a partir desse lugar simbólico?
Renata: Mudar o final, tem a ver com isso, com uma produção simbólica capaz de libertar os corpos e as mentes de amarras produzidas no campo do imaginário. A produção de imaginários é muito real, ela se torna palpável ao virar ação no mundo físico. Diz respeito à possibilidade de se imaginar como protagonista de sua existência ao interferir no campo dos desejos. No campo social, fomentar para além das telas tem sido um caminho importante. E pra responder sobre o que ainda quero mudar: muita coisa. Pra mim também. Em mim também. Seria bom poder caber nessa existência. E eu ainda desejo olhar para as obras produzidas pelos grupos não privilegiados e ver que elas são vistas apenas como arte, e não como uma espécie de ‘experimento social’ ou um manejo político estratégico.
Bravo! – Em produções como Cidade de Deus: A Luta Não Para e Os Quatro da Candelária, você trouxe novas perspectivas para histórias fortes. Como equilibra a responsabilidade social com o instinto artístico?
Renata: Algumas histórias pedem uma responsabilidade muito grande quanto às escolhas que fazemos pras narrativas. São as abordagens, os recortes, as batalhas que você compra, as negociações que você faz com a vida. O nosso olhar e fazer está atrelado ao tempo em que vivemos. Quando você está lidando com certos personagens e contextos é preciso estar atento, estar aberto a ouvir, gastar tempo refletindo e estudando as maneiras como você vai abordar as coisas. E ainda assim você pode errar, pode não ser interpretado da forma como projetava inicialmente, algo pode te escapar. É sempre um risco.
Bravo! – Você já sentiu, em algum projeto, esse risco muito concreto de a obra ser lida de um jeito que te preocupava? Como isso interfere nas conversas com equipe e canal?
Renata: Quando estamos falando de certas representações precisa existir um alinhamento muito grande das ideias, já que o que você está propondo extrapola a escrita. O diálogo é sempre necessário, pois esse equilíbrio que você cita, entre o ímpeto artístico e a responsabilidade com a qual você comunica uma ideia, precisa estar em uma balança norteadora. Isso não é nada simples, pois você precisa ponderar as coisas, precisa ser empático mesmo quando deseja provocar, precisa ter uma abertura para aprender, tem de se interessar genuinamente pelas pessoas, pelo mundo, pelo entorno. Tem um sinalizador de consciência humanitária que fica na cabeça apitando a todo tempo, que te faz sempre questionar se algo é um desserviço. O que a gente comunica impacta. Isso é sério.
Bravo! – O reality No Jogo e a série (in)vulneráveis unem propósito, inclusão e entretenimento. O que te inspirou a criar um formato tão inédito e o que mais te emocionou nesse processo?
Renata: Acho que vi uma possibilidade de propor algo que unisse arte e propósito de uma forma bem concreta, alinhando conteúdo e estética nessa entrega. Conhecendo mais sobre o histórico dos canais você entende que o ‘DNA’ dos dois é distinto e a provocação de imaginar algo que os unisse de alguma maneira soava interessante. Um desafio, porém, interessante.
Bravo! – Quando você começou a desenhar esse universo, qual foi a exigência inegociável que você colocou na mesa?
Renata: A minha intenção foi propor um projeto que abrisse portas para outras pessoas e que o que se visse relacionado a diversidade na tela também estivesse aplicado nos bastidores. O ‘No Jogo’ é um reality que é uma seletiva de elenco misturada com uma residência artística para atrizes. A proposta foi buscar essas atrizes nas peças, nas universidades, no cinema independente, nas companhias de teatro, nas companhias artísticas. Esse grupo começa como um grupo maior e vai diminuindo, até chegarmos ao grupo menor que entra no reality do Canal E!. Então, em sete episódios, às três atrizes que levam os papéis protagonistas da série (in)vulneráveis, que vai ao ar no Universal +. Eu sou atriz, propor um programa dentro do universo das Artes Cênicas, era mais natural e verdadeiro para mim. E claro, essa proposta, dessa forma, responde a uma demanda não apenas do canal, que buscava algo novo, mas responde a uma inquietação minha.
Bravo! – E quando esse reality vira série, você dá outra “torção” ainda: uma série médica em que o foco não são os médicos. De onde vem essa escolha pela enfermagem e pela zona oeste do Rio?
Renata: Quanto à série, fiz uma torção ao propor uma série médica focada não nos médicos, mas na enfermagem. Por isso muitas dinâmicas que as pessoas viram ao longo dos episódios do reality abordaram esse universo. A série se passa em uma unidade de saúde na periferia do Rio de Janeiro, zona oeste da cidade. E no último episódio finalmente pudemos revelar Zezé Motta como a enfermeira chefe da unidade de saúde. Zezé é uma grande estrela do canal e a intenção de tê-la como um papel de destaque. Eu agradeço a honra de poder ter tido a Zezé nesta narrativa. As meninas piraram ao contracenar com ela. Foi emocionante. Assim, neste projeto, o protagonismo é da enfermagem, dessas enfermeiras negras que atuam nessa unidade de saúde, e que representam historicamente todo um corpo de profissionais que atuam na saúde do nosso país. A intenção da história também foi estimular a reflexão sobre os cuidados com essas profissionais, que muitas vezes estão ali para servir, para cuidar, mas em suas subjetividades e particularidades estão sendo pressionadas, estão sofrendo, estão lidando com seus próprios fantasmas.
Bravo! – Você fala muito de estética como posicionamento político. Que tipo de cuidado estético você quis afirmar em No Jogo e (in)vulneráveis – de figurino a fotografia?
Renata: A questão da escolha estética, tanto para o reality, quanto para a série, carrega também uma intenção e um objetivo. Tem uma assinatura de beleza, autenticidade, excelência e ancestralidade. Me emociona ver o trabalho dos profissionais que somaram nessa construção. Eles entenderam, acreditaram na linguagem proposta e acrescentaram demais: Flavio Borges (diretor de fotografia), Lucas Osório (diretor de arte), Lena Santana (figurinista e estilista), Elaine Black Martins (trancista e penteadista), pra citar alguns. Sobre a série não posso falar muito, já que ainda não foi ao ar, só posso contar um pouquinho sobre o que já foi exposto pelo reality, que serviu como essa porta de entrada para esses quatro episódios que compõem a série, que deve ir ao ar em 2026, trazendo as atrizes em suas personagens. Já o ‘No Jogo’ já está completo no streaming Universal +.

Bravo! – Você também é escritora premiada e diretora. O que a literatura e o audiovisual te permitem expressar de formas diferentes?
Renata: Essa é uma pergunta bem interessante. Há histórias que têm uma natureza flutuante, elas podem se adaptar às variadas plataformas. Há outras que não, a força delas está atrelada ao veículo onde ela existe. Quando você cria pro audiovisual você conta por imagens, a composição de cada uma delas. A imagem diz, e não apenas a palavra. Na literatura é diferente no sentido de que não há limite para nada. Você pode imaginar sem trava, porque na imaginação tudo é possível. A proposta está inteira na palavra, o leitor lê e ele imagina a partir do que você colocou em texto, não existe uma intermediação, apenas a palavra no papel. E é bonito isso. Esse momento íntimo entre você e o leitor. Gosto de imaginar alguém em algum lugar, solitário, lendo o livro. É ele quem vai imaginar, a imagem nasce na cabeça dele, toda a história. A tela tá lá, nele, de certa forma ele é o diretor e o receptor.
Bravo! – Ao longo da carreira, você abriu portas em salas que antes não tinham mulheres negras. O que mudou desde a sua estreia e o que ainda precisa mudar nos bastidores do audiovisual?
Renata: São gerações que seguem produzindo politicamente, pensando coletivamente, lutando, produzindo conteúdo, produzindo intelectualmente… A gente tá falando, e aqui eu citarei apenas as mulheres, mas eu olho pra Zezé Motta, Léa Garcia, Lélia Gonzalez, Maria Firmina dos Reis, Leda Maria Martins, Beatriz Nascimento, Adélia Sampaio, Alzira Fidalgo, Ana Maria Gonçalves, Chica Xavier, Esperança Garcia, Aqualtune, Benedita da Silva, Marina Silva, Marina Miranda, Zezeh Barbosa, Carmem Luz, Dona Ivone Lara, Jurema Batista… Enfim, uma constelação infinita de mulheres que agiram para que de fissura em fissura a gente estivesse aqui. E uma série de outras mulheres que agiram no anonimato, e apesar dos apagamentos, para que estivéssemos aqui. As mudanças sociais ocorrem porque muita gente faz pressão, porque as pessoas não desistem, porque a despeito de toda negativa e impossibilidade imposta, as pessoas continuam a produzir. Como podem, como conseguem.
Bravo! – Na prática, como foi viver essa impossibilidade dos anos 1990, quando você entra no audiovisual sem pares, sem programas de apoio, sem rede?
Renata: Era improvável, nada à minha volta era favorável para que eu existisse em certos espaços da sociedade. Eu não tinha pares, não existia a meu alcance uma outra mulher negra com quem eu pudesse trocar, me apoiar, me fortalecer. Não havia programas de apoio, mentorias, instituições, nada. Então é uma construção desafiadora que vai se fazendo e no movimento você vai movendo as coisas. Porque não tem escolha, mas há uma urgência. Hoje, a gente consegue olhar e ver outras criadoras. Você tem com quem trocar, com quem somar, com quem aprender também. É bom olhar esse cenário e ver gente boa, talentosa, produzindo coisas. É bom ver as narrativas que estão sendo realizadas através de outros paradigmas.
Bravo! – Você faz uma distinção forte entre representação e representatividade. Onde sente que a indústria ainda confunde as duas coisas — e com que consequências?
Renata: Não dá pra gente perder de vista é que representação e representatividade são coisas distintas e em cada caso a gente precisa saber com o que estamos lidando. Representar um grupo e uma ideia é algo diferente da efetiva inclusão e da escuta de vozes nos processos de decisão. Escutar, pensar junto, dialogar, se inquietar com as narrativas, propor mudanças, equiparar salários, reconhecer as contribuições efetivas de profissionais com um vasto lastro na indústria, pensar em projetos de carreira, contribuir para processos que não adoeçam sistematicamente as pessoas. Como se faz isso? Como se faz isso junto? A gente precisa olhar para isso, estar em diálogo. Não construindo para o futuro somente, porque o hoje importa. O que acontece com as gerações de hoje? Com quem envelhece hoje? Com quem tem tanto a contribuir hoje? Com quem precisa viver hoje? Se a gente não diferenciar representatividade de representação a gente segue produzindo uma narrativa onde o país não se reconhece e segue matando nossos talentos no processo.
Bravo! Para as novas gerações que estão chegando agora: qual conselho você daria a uma jovem roteirista negra que sonha em transformar o mundo pelas histórias que escreve?
Renata: Eu sempre vou dizer para estudar: a área, dramaturgia, artes, teatro, cinema, literatura, roteiro. Pra ler tudo o que julgar importante, pra estar atenta ao que acontece no mundo, estar ciente das transformações. Pra olhar e reverenciar os antigos. Estar no presente, se mover para o futuro, mas não perder de vista o que veio antes. É parte de um conhecimento que aponta a busca por sabedoria, que quer aprender com o passado para entender o presente e construir o futuro, ressignificá-lo. O hoje contém o ontem e o amanhã, portanto.
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