Doctor Zhivago faz 60 anos: por que o clássico de Lean ainda emociona

Entre os grandes arquitetos do cinema do século 20, poucos são reverenciados com a devoção dedicada a David Lean. Ele filmava pouco — apenas 17 longas — mas filmava como quem escreve na pedra. Sua obra não é vasta, mas é colossal, e basta olhar a curva de sua carreira para compreender por que tantos cineastas ainda hoje o tratam como o mais rigoroso, elegante e magistral de todos. Depois de incendiar o mundo com Lawrence of Arabia, em 1962, Lean retornou três anos depois com um épico em direção contrária: se Lawrence era o sol, Doctor Zhivago seria a neve; se um era o triunfo imperial do deserto, o outro seria o colapso íntimo da Rússia em convulsão.

Lançado em dezembro de 1965, Zhivago completou 60 anos em 2025, mantendo intacto seu estatuto de obra-prima. É impressionante constatar como um filme concebido como melodrama histórico — e acusado, à época, de ser “romântico demais” e “político de menos” — se transformou em um dos maiores épicos já rodados. Seu poder não mora apenas na escala, mas no detalhe. Lean compreendia a delicadeza com que uma história pode atravessar gerações, e mesmo tendo dirigido produções grandiosas, Zhivago se sustenta como cinema em seu estado mais emocional e atemporal.

A adaptação nasce carregada de controvérsia. O romance de Boris Pasternak, escrito ao longo de uma década e publicado no Ocidente em 1957, foi imediatamente censurado na União Soviética. Sua “culpa”? Ter uma visão humanista, individual, lírica demais. Pasternak não glorificava a Revolução; tampouco repetia o discurso oficial do realismo socialista. Pelo contrário: expunha a complexidade moral, a violência sistêmica e o impacto humano da transição do czarismo ao bolchevismo. O regime viu no livro um desvio, quase uma traição, e transformou o romance num símbolo de resistência cultural. Proibido em casa, tornou-se obrigatório no mundo.

Lean se apaixonou por essa combinação explosiva de personagem e tempo histórico. Impossibilitado de filmar na Rússia, ele reconstruiu o país em pedaços: Espanha, Finlândia, Canadá, Inglaterra. O inverno de 1964 foi o mais quente em cinquenta anos, obrigando a equipe a inventar neve com pó de mármore. Assim nascia a paisagem melancólica que, até hoje, define o imaginário ocidental da Rússia revolucionária.

Se a imagem de Doctor Zhivago é indelével, muito disso se deve também à trilha sonora de Maurice Jarre. É impossível pensar no filme sem ouvir, imediatamente, os acordes de “Lara’s Theme”, a valsa melancólica que atravessa a narrativa como se fosse a própria memória de um amor condenado. Transformada em canção popular sob o título “Somewhere, My Love”, a melodia escapou da tela, invadiu rádios, bailes, salas de estar e ajudou a fixar o filme no imaginário coletivo muito além da cinefilia. Jarre compõe não apenas um fundo musical, mas uma espécie de comentário afetivo permanente: a música costura tempos, distâncias e mudanças de regime, lembrando o espectador, a cada retorno do tema, que por baixo da História ainda lateja um coração apaixonado.

O roteiro de Robert Bolt precisou fazer escolhas drásticas. O romance é um mosaico imenso, Pasternak entrelaça dezenas de personagens, múltiplas fases políticas e longos trechos de poesia. Lean e Bolt sabiam que uma adaptação fiel exigiria quarenta e cinco horas de filme. Optaram, então, por preservar o essencial: Yuri, Lara, a guerra, o amor, a ruína e a sobrevivência do indivíduo diante da História. Muito foi cortado: personagens inteiros, digressões políticas, extensas reflexões poéticas, nuances de tempo e geografia. Mas algo fundamental foi mantido: a delicadeza de uma história que só existe porque a vida insiste em se infiltrar nas fendas do caos.

Yuri Andreyevich Zhivago, personagem que dá nome ao romance, é um homem feito de delicadeza num mundo brutal. Órfão desde a infância, ele cresce com uma sensibilidade que nunca se dissolve: a melancolia serena, a curiosidade diante da vida e a necessidade quase física de registrar o mundo através da poesia. Médico por vocação ética e poeta por urgência interior, Zhivago vive a contradição de tentar curar corpos enquanto tenta compreender a alma de um país partido. Ele não é herói nem revolucionário; é observador, alguém para quem a empatia vale mais do que qualquer dogma. Essa recusa em desumanizar o outro, num tempo em que tudo exigia radicalização, o transforma num símbolo silencioso de resistência. Mesmo no caos — entre guerra, perda, fome e exílio — Zhivago continua escrevendo. Seus poemas são a última prova de que, apesar de tudo, ele permaneceu inteiro. A poesia é seu legado e, no fim, a razão pela qual o livro leva seu nome: é através de suas palavras que sobrevivem a memória, o amor e a tragédia de Lara.

Sim, porque no centro desse romance de guerra está Lara Antipova, personagem que Pasternak descreveu como “a alma feminina da Rússia”. Sua trajetória é uma das mais devastadoras do século 20. Ela começa como uma adolescente marcada por circunstâncias sociais que a deixam vulnerável ao poder masculino e à hipocrisia moral de sua época. Viktor Komarovsky, homem mais velho, influente e manipulador, a seduz — na verdade, a coage — numa relação longa, destrutiva e traumática. Tentando romper esse ciclo, Lara toma uma decisão dramática: vai a uma recepção armada e atira nele. A violência da cena é seu primeiro gesto de autonomia, o momento em que ela recusa ser apenas vítima, mesmo pagando caro por isso.

Na tentativa de reconstruir sua vida, ela se casa com Pasha Antipov, jovem idealista que a adora, mas não compreende suas sombras. A Primeira Guerra Mundial irrompe, Pasha desaparece, e Lara se alista como enfermeira para procurá-lo. É aqui que ela encontra Yuri Zhivago. Durante meses, os dois trabalham lado a lado num hospital de campanha. Ele é médico e poeta; ela, uma mulher que tenta manter alguma dignidade num mundo em colapso. Os dois reconhecem no outro uma espécie de abrigo emocional, silencioso, inevitável, embora Yuri permaneça fiel à esposa, Tonya.

Anos depois, já com a Rússia tomada por guerra civil, eles se reencontram em Yuriatin. É ali que o amor deles se consuma, embora sempre à beira do perigo. A Cheka vigia Lara por causa de sua ligação com Pasha, agora radicalizado sob o nome de Strelnikov. Komarovsky retorna para alertá-la sobre o risco real de prisão. Lara aceita fugir, mas Yuri — convencido de que sua presença a condena — fica para trás. É um dos gestos mais dolorosos da história: ao tentar salvá-la, ele a perde. No trem, Lara revela estar grávida de Yuri; a vida insiste, mesmo no escombro. O destino dela termina cercado de silêncio: após a morte de Yuri, ela aparece brevemente e logo desaparece, provavelmente enviada a um gulag. Nenhum registro, nenhum corpo. Apenas uma ausência que se transforma em lenda.

Lean encontrou em Lara a luz do filme, e Julie Christie, com sua beleza ferida e dignidade luminosa, tornou-se a encarnação definitiva dessa figura trágica. Omar Sharif, escolhido após Peter O’Toole, Paul Newman e Max von Sydow recusarem o papel, empresta a Yuri uma melancolia tão pura que seu rosto se tornou inseparável do personagem. O elenco é completado por Geraldine Chaplin, Rod Steiger, Alec Guinness, Tom Courtenay — este último um dos maiores atores de sua geração — cada um compondo o mosaico emocional dessa Rússia reinventada.

Doctor Zhivago foi lançado com críticas divididas. Acusaram-no de romantizar a Revolução e de trivializar a política. Mas mesmo quem o criticou reconheceu sua beleza hipnótica. O público o abraçou de imediato: o filme recebeu dez indicações ao Oscar e venceu cinco, incluindo Melhor Roteiro Adaptado, Melhor Trilha Original e Melhor Fotografia. Ajustado pela inflação, continua entre os filmes de maior bilheteria da história.

É interessante notar como Lean, em sua obsessão por escala e detalhe, criou um cinema que depende tanto da geografia quanto da emoção. Lawrence of Arabia, seu filme mais longo, com 222 minutos, é o ápice dessa vocação monumental. Zhivago, com cerca de 193 minutos, é mais curto, mas talvez seja o mais íntimo. É o épico do olhar, da neve, do trem que avança no horizonte, do amor que não pode existir e, por isso mesmo, queima mais forte.

Se Lawrence é uma odisséia masculina sobre heroísmo e deserto, Zhivago é uma elegia sobre como o amor insiste em florescer no inverno da História. Sessenta anos depois, o impacto permanece. David Lean filmou um país inexistente, congelou emoções numa paleta de gelo e luz e transformou a tragédia de um tempo em poesia pura. Ninguém mais filmou assim. Talvez ninguém mais filme.


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