Muitas histórias apostam em elementos naturais para reforçar sua mensagem. Vento, madeira, memória e silêncio compõem Train Dreams, de Denis Johnson, e o filme — adaptação do livro de 2011 — reconta a história de um homem comum atravessado por perdas extraordinárias, vivendo num país que se modernizava rápido demais para alguém como ele acompanhar. A produção, recém-chegada à Netflix, entende isso profundamente e talvez por isso seja, antes de tudo, um filme sobre sensações.

Robert Grainier não é um herói. É um trabalhador braçal do início do século 20, um homem introvertido, quase bruto, moldado pelo trabalho físico e por um mundo que nunca lhe pediu delicadeza. Joel Edgerton, que domina como poucos a arte de interpretar silêncios, entrega aqui uma de suas atuações mais fortes: tudo está no olhar, na respiração, no modo de ocupar o espaço como quem carrega um peso impossível de largar.
A vida de Grainier segue simples até que um incêndio devastador engole a região onde vive e leva sua esposa, Gladys, e a filha pequena. O luto, então, não vira grito — vira hábito. Ele se torna um eremita, preso entre lembranças, rumores, mitos e o avanço das ferrovias que cortam a paisagem como cicatrizes. Há nele uma esperança de reencontro que o acompanha até o último suspiro, um desejo que sabemos impossível, mas que, assim como ele e por causa dele, ansiamos igualmente.
Felicity Jones aparece menos do que gostaríamos, mas sua presença marca o filme inteiro. Há nela uma precisão rara: doçura sem sentimentalismo, empatia sem ingenuidade. É exatamente o tipo de interpretação que faz a ausência da personagem pesar como uma sombra nas cenas seguintes. Impressiona como ela torna Gladys luminosa, mesmo quando o filme a transforma em fantasma.
A fotografia é um assombro. Paisagens abertas, rios antigos demais para testemunhar tanta perda, florestas que guardam mais silêncio do que respostas. É o tipo de filme em que a natureza não é cenário, é personagem, consciência, testemunha.
E então vem a trilha sonora. Bryce Dessner, do The National, continua sua transição para compositor de cinema com uma delicadeza quase espiritual. Há notas que parecem saudade, acordes que soam como lembranças quebradas. E a escolha final — uma canção interpretada por Nick Cave — é o golpe preciso: uma despedida que consolida tudo o que o filme quer dizer sobre dor, persistência e sobrevivência.
Mas talvez o elemento mais curioso — e ambicioso — da adaptação seja a narração em off, retirada diretamente das páginas de Denis Johnson. Isso divide críticos, e faz sentido. Assim como Andrew Dominik em O Assassinato de Jesse James pelo Covarde Robert Ford ou Martin Scorsese em A Época da Inocência, o filme abraça uma narração literária, quase confessional, que guia o espectador pelos pensamentos mais íntimos do protagonista.
Funciona? Em parte. A narração nos conduz por terrenos emocionais difíceis de traduzir apenas com imagem, mas também nos limita. Ocupa espaços que poderiam ser nossos — da imaginação, da projeção, da interpretação. É como se o filme nos desse a mão, mas tirasse um pouco da liberdade do caminho.

A crítica tem respondido a isso de forma interessante. Muitos elogiam justamente a coragem de não “traduzir” o livro para a linguagem mais convencional da Netflix. Outros afirmam que a narração se impõe demais. O consenso, porém, aponta para a mesma direção: é um filme profundamente diferente do que se espera dentro do catálogo da plataforma.
Nem ritmo acelerado, nem estrutura de thriller, nem melodrama fácil. É uma obra contemplativa, íntima, quase meditativa — um raro caso de cinema que exige entrega, não atenção imediata.
E, no fim, Train Dreams permanece fiel ao que sempre foi: uma reflexão sobre a estranha resiliência humana. Sobre seguir vivendo apesar de tudo e, às vezes, por causa de tudo. Um épico microscópico sobre obsessão, perda e a solidão que se torna casa quando não há mais nada.
Há algo profundamente irônico — e absolutamente perfeito — no título Train Dreams. Não é apenas a referência literal ao trabalho de Grainier, um homem que passou a vida ao lado dos trilhos, construindo o avanço de um país que nunca o viu de fato. “Sonhos de trem” são os sonhos que passam rápido demais, como vagões que você tenta acompanhar com os olhos e nunca alcança. São memórias que tremem, ilusões que se misturam ao luto, fantasias que surgem no silêncio da montanha quando o mundo inteiro segue em frente sem você.
Grainier não sonha com trens; ele sonha como os trens — em movimento, mas condenado a permanecer no mesmo lugar. O título descreve essa contradição: um homem preso a uma vida que continua deslizando ao lado dele, sempre distante, sempre fora de alcance.
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Acabei de ver o filme. Muito bom e um tanto triste. A falta de propósito de se estar vivo ou a falta de sentido da vida juntos com uma compreensão de que a falta disso não impede uma comunhão com o mundo, mesmo que isso não traga alegria ou felicidade. Só impede que a tristeza se instale de vez como dona do terreno…
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É um filme que fica com a gente, né?
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