A Malvada (All About Eve) é um daqueles raros casos em que a palavra “clássico” não dá conta. É um filme perfeito. Não perfeito por ser intocável, mas porque aceita ser humano demais: venenoso, elegante, divertido, cruel, vulnerável, imortal. Em 2025, aos 75 anos, ele continua relevante, emocionante e devastador como se tivesse estreado ontem. A indústria mudou, os palcos mudaram, as câmeras mudaram, o glamour mudou. O mecanismo de poder, medo e desejo que move All About Eve, não.
Escrito e dirigido por Joseph L. Mankiewicz e inspirado no conto “The Wisdom of Eve”, de Mary Orr, o filme parece, na superfície, um drama sobre o mundo do teatro. Na prática, é um tratado sobre ambição, envelhecimento, insegurança, performance e sobrevivência emocional. No centro, duas mulheres que viraram arquétipos universais: Margo Channing, a estrela diante da passagem do tempo; e Eve Harrington, a fã perfeita que aprende rápido demais a jogar.

O elenco é um exercício de precisão cirúrgica: Bette Davis constrói uma Margo monumental em orgulho e fragilidade; Anne Baxter veste Eve com doçura venenosa; George Sanders transforma Addison DeWitt no narrador mais cruel e espirituoso da história do cinema; Celeste Holm, Thelma Ritter, Gary Merrill e uma jovem e luminosa Marilyn Monroe completam o tabuleiro onde ninguém é inocente e todos estão em risco.
E é impossível falar de perfeição sem falar de figurino e da famosa festa. Os trajes criados por Edith Head não são decoração: são dramaturgia pura. Margo se veste como quem construiu uma armadura ao longo dos anos, tecidos estruturados, linhas firmes, presença impositiva. Eve começa apagada, quase neutra, e vai ganhando forma, brilho, intenção. Quando percebemos, ela já ocupa o espaço como quem não quer mais pedir licença à vida.
A festa de aniversário de Margo é uma das sequências mais cruéis do cinema. Não é apenas um evento social: é um colapso público, um ritual de destronamento ainda invisível. A bebida solta, os risos atravessados, os olhares que medem, avaliam, esperam a queda. Ali nasce a frase eterna — “Fasten your seatbelts, it’s going to be a bumpy night” — que não é só sobre aquela noite, mas sobre o resto da vida de Margo. A câmera não a protege. A festa a expõe. Eve observa tudo em silêncio. Em All About Eve, nenhuma fragilidade passa despercebida.

Até os bastidores do filme parecem ecoar seu próprio tema. Claudette Colbert era a primeira escolha para viver Margo Channing. Mas uma grave lesão nas costas, durante as filmagens de Three Came Home, a tirou de cena. Foi assim que Bette Davis entrou — ela própria considerada “veneno de bilheteria” em 1949. Ou seja: até fora da tela, uma estrela caiu para outra ascender. Anne Baxter, escolhida em parte por sua semelhança com Colbert, foi pensada para espelhar fisicamente Margo ao longo do filme, uma substituição visual e simbólica. Décadas depois, Baxter revelou que moldou Eve inspirada em uma understudy real, da sua adolescência, que havia prometido “acabá-la” para tomar seu lugar. Nada em All About Eve é apenas ficção, tudo é reflexo.
A consagração foi imediata. O filme chegou ao Oscar com 14 indicações — um recorde que só seria empatado por Titanic e La La Land — e venceu seis estatuetas, incluindo Melhor Filme, Diretor, Roteiro e Ator Coadjuvante. Em um momento histórico, o prêmio de Melhor Filme foi entregue por Dr. Ralph Bunche, vencedor do Nobel da Paz, sendo a primeira pessoa negra a apresentar essa categoria. Décadas depois, o filme entraria no National Film Registry como obra “cultural, histórica e esteticamente significativa”. Não por nostalgia — mas por permanência.

E talvez a razão da permanência esteja no fato de que, com o tempo, o filme deixa de ser apenas sobre Eve… e passa a ser sobre nós. Há um momento em que o espectador para de se identificar com a jovem faminta e começa a se ver na estrela ameaçada. Como escreveu um crítico muitos anos depois: “Margo Channing, sou eu.” O terror de perceber que o brilho já não vem com a mesma facilidade. Que a mente talvez não seja tão rápida. Que há alguém mais jovem observando. Esperando. Pronto para ocupar o espaço.
O mais assustador é que All About Eve entende isso sem sentimentalismo. Ninguém ali é só vilão ou só vítima. Margo é difícil, insegura, brilhante, ferida. Eve é ambiciosa, falsa, talentosa. Addison é cruel, mas quase sempre honesto em sua crueldade. Karen é cúmplice por covardia. Birdie, a única que enxerga tudo, simplesmente desaparece da história e até hoje há quem acredite que Eve a tenha “eliminado” simbolicamente (ou não tão simbolicamente assim). Em um mundo de bastidores, quem enxerga demais não sobrevive por muito tempo.
O plano final, com a jovem Phoebe vestindo o manto de Eve diante do espelho, fecha o ciclo com perfeição aterradora. Não existe uma Eve. Existem infinitas. Sempre haverá alguém copiando seus gestos, suas poses, seu prêmio, seu lugar. O espetáculo não tem compromisso com a permanência. Apenas com a substituição.

Talvez seja por isso que All About Eve seja um filme tão amado por quem envelhece. Porque ele não fala apenas sobre teatro. Fala sobre tempo. Sobre o que somos quando o brilho começa a oscilar. Sobre a coragem — ou o pavor — de perceber que já fomos jovens, já fomos famintos, já fomos a promessa. E agora somos a sala ocupada.
Setenta e cinco anos depois, All About Eve ainda dói, ainda diverte, ainda constrange, ainda ilumina. Ele nos olha direto nos olhos e pergunta, com sua voz mais cruel e mais honesta:
quem você é quando os aplausos começam a diminuir?
E talvez seja exatamente por isso que ele continue sendo, geração após geração, um filme absolutamente perfeito.
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