Não é confortável assistir ao novo documentário sobre P. Diddy na Netflix, e talvez seja justamente por isso que ele seja necessário. Vivemos um momento em que parte do debate público tenta rebaixar a gravidade das acusações recorrendo a velhos atalhos retóricos, quase sempre atravessados por argumentos machistas e ultrapassados, como a ideia de que tudo teria sido “consensual” ou de que se trataria “apenas” de “mais um caso” de violência doméstica, como se a monstruosidade pudesse ser graduada, como se houvesse abusos mais ou menos aceitáveis. O que o documentário faz, acima de tudo, é se recusar a permitir esse amortecimento moral. Ele insiste. Ele não deixa o caso morrer. E isso, num ambiente de esquecimento acelerado, é um gesto político em si.

Se até agora os projetos sobre Diddy pareciam operar majoritariamente com imagens de arquivo, fotos, entrevistas posteriores e reconstruções, este novo avança alguns graus no que diz respeito à exposição do mecanismo real do colapso. Há imagens que funcionam quase como um reality show da derrocada: as horas que antecedem a prisão, os bastidores da tentativa de controle de danos, a montagem da estratégia jurídica e de comunicação, a sensação permanente de que tudo ainda poderia ser contido, como sempre foi. Pela primeira vez, não estamos apenas olhando para o passado glorioso que desmoronou, mas para o presente ainda em combustão, para o momento em que o império tenta se manter de pé enquanto já está estruturalmente quebrado.
O roteiro, para quem acompanha o caso de perto, não apresenta exatamente novas acusações. E isso, longe de ser uma fragilidade, é parte de sua força. O que muda aqui é a materialidade das provas. As imagens inéditas, os registros trazidos por vítimas ou por pessoas que estiveram muito próximas a Diddy, não ampliam apenas o repertório de denúncias: elas confirmam, uma a uma, as palavras que já circulavam. O que antes era descrito em documentos e depoimentos passa a ter corpo, tempo, reação, silêncio, expressão. A coerção deixa de ser um termo jurídico e passa a ser uma experiência visível. O abuso deixa de ser uma narrativa abstrata e ganha textura. O trauma deixa de ser um conceito e se instala nos gestos, nas pausas, nos olhares. Tudo aquilo de que ele foi acusado encontra, ali, um lastro imagético que torna impossível a defesa confortável da dúvida eterna.
É também impossível assistir a esse material sem perceber o quanto ele só existe porque uma cultura criminosa foi normalizada durante décadas por trás da indústria musical, uma cultura que protegeu, blindou, negociou e reconfigurou o poder de figuras como ele sempre que necessário. Advogados, acordos, contratos de silêncio, pagamentos extrajudiciais, ameaças implícitas, conivência institucional — nada disso surge por acaso. Diddy não foi uma anomalia num sistema saudável, mas um produto perfeitamente adaptado a ele. O documentário escancara não apenas um indivíduo, mas uma engrenagem inteira que segue funcionando mesmo depois que uma de suas peças mais visíveis finalmente cai.
Ainda assim, há ausências que pesam, e elas não passam despercebidas. Nomes centrais da engrenagem simbólica do poder permanecem fora do quadro: Jay-Z, Kanye West, Beyoncé, Jennifer Lopez. Uma única imagem retorna repetidamente ao imaginário coletivo, a de Leonardo DiCaprio na famosa festa branca, como se ela simbolizasse, sozinha, uma rede de cumplicidades muito mais ampla. Vítimas como Justin Bieber tampouco têm espaço, o que certamente se relaciona a restrições judiciais, mas o efeito simbólico permanece: há silêncios que o documentário não consegue romper. E esses silêncios também contam uma história, a de que certos nomes ainda estão protegidos pelas mesmas forças que durante anos protegeram Diddy.

Nada disso é neutro, tampouco sua existência enquanto produto audiovisual. A rivalidade entre Diddy e 50 Cent atravessa décadas, atravessa disputas de poder, controle, narrativas e dinheiro dentro do próprio rap. Aqui, porém, ela transborda para outro terreno. O fato de 50 Cent assinar a produção é indissociável de sua trajetória de embate com Diddy, mas reduzir o documentário a um simples acerto de contas pessoal seria uma saída fácil demais, quase tão cômoda quanto as tentativas de relativizar as acusações. Há interesse, há revanche simbólica, há, sim, espetáculo. Mas há também um gesto claro de insistência: o de não permitir que a máquina do esquecimento absolva mais um homem poderoso apenas pelo desgaste do tempo.
Ao fim, o próprio documentário afirma algo que soa quase insuportável de admitir: mesmo preso, Diddy venceu. Venceu porque construiu um império financeiro que continua operando independente de sua presença física. Venceu porque seus contratos, seus ativos, suas marcas seguem girando. Venceu porque as estruturas que o sustentaram continuam essencialmente intactas. E se ele venceu, essa vitória se dá sobre uma derrota coletiva, a nossa, a de uma sociedade que permitiu que sucesso e dinheiro funcionassem como escudos morais, que tolerou práticas abusivas enquanto elas eram lucrativas, que preferiu separar talento de caráter até o limite do insustentável.
É por isso que, apesar das acusações de sensacionalismo, apesar das lacunas, apesar dos silêncios estratégicos, este documentário importa. Porque ele irrita, incomoda, contradiz, expõe. Porque ele recusa a ideia de conforto. Porque ele insiste em lembrar que a idolatria também mata, ainda que de formas menos visíveis do que a violência direta. E porque, no fundo, há uma verdade incômoda na motivação de 50 Cent que transcende sua rivalidade pessoal: monstros não podem ser endeusados. Nunca puderam. Nunca deveriam ter sido.
Descubra mais sobre
Assine para receber nossas notícias mais recentes por e-mail.
