Philip Larkin nunca teve a aura do poeta-herói. Não cultivava gestos grandiosos, não se vestia de gênio trágico, não perseguia holofotes. Foi, quase a vida inteira, um bibliotecário universitário em Hull, alguém que organizava estantes de livros de dia e escrevia alguns dos versos mais incômodos — e mais precisos — da literatura inglesa do pós-guerra à noite. Sua grandeza sempre esteve justamente aí: no modo como olhou para o ordinário sem concessões, retirando dele qualquer romantização fácil.

Publicado tardiamente e parcamente, Larkin construiu sua obra em poucos volumes decisivos, The Less Deceived, The Whitsun Weddings, High Windows. Foi o poeta da classe média inglesa, dos subúrbios, dos empregos burocráticos, dos casamentos que envelhecem em silêncio, das viagens de trem aos domingos, da sexualidade atravessada por culpa, da consciência obsessiva da morte. Seu estilo parecia simples, quase coloquial, mas essa simplicidade escondia uma lâmina: cada poema é uma constatação seca de que a vida é menos do que se prometeu ser.
Larkin falava de amor, mas quase sempre como perda. Falava de trabalho como obrigação que esmaga. Falava do tempo não como promessa, mas como ameaça constante. Sua poesia é atravessada por aquilo que críticos chamaram de “desencanto civilizado”: nada explode, nada vira catarse, nada se resolve. Tudo apenas continua — até não continuar mais.
Esse olhar, tão profundamente inglês, é também profundamente político, ainda que nunca militante. Larkin escreve sobre o pós-guerra britânico sem slogans, mas com um sentimento difuso de empobrecimento moral, de sonhos encolhidos, de uma sociedade que troca ambições por estabilidade e depois descobre que estabilidade também oprime.
É desse mundo — não das grandes utopias, mas das pequenas prisões cotidianas — que nasce não apenas a poesia de Larkin, mas, décadas depois, um certo espírito narrativo que atravessa Down Cemetery Road.

O verso que vira estrada
O próprio título Down Cemetery Road nasce diretamente de um verso de Larkin, no poema “Toads Revisited”: “Give me your arm, old toad; / Help me down Cemetery Road.” Ali, o “sapo” é o trabalho, aquela força pesada, inevitável, que se senta sobre a vida de todos nós. Pedir ajuda para descer a “Cemetery Road” é, em última instância, pedir companhia para atravessar a vida até a morte, carregado pelo mesmo peso que nos sustenta e nos oprime.
Quando Mick Herron escolhe esse verso como título de seu romance — que mais tarde daria origem à série da Apple TV+ — ele não está apenas fazendo uma homenagem literária. Está declarando uma filiação estética e moral.
Herron conta que, antes de ter propriamente uma “ideia”, já tinha três elementos fixos: o título vindo de Larkin, uma mulher chamada Sarah e o ponto de vista colado a ela. Todo o resto viria depois. E isso é profundamente larkiniano: primeiro vem o tom, o peso existencial, a estrada. O enredo é quase consequência.

Sarah: uma personagem que poderia sair de um poema de Larkin
Na série, Sarah, não é a protagonista sozinha. Ruth Wilson divide a posição com Emma Thompson, que interpreta Zoë Boehm (que é quem declama a poesia no penúltimo episódio). No livro Down Cemetery Road, Sarah é desenhada a partir de uma lógica quase matemática, como o próprio Herron descreve: ela precisa estar entediada, sem trabalho, sem filhos, sustentada por um parceiro bem-sucedido, vivendo num bairro confortável demais para permitir grandes rupturas. Precisa carregar ressentimentos pequenos, sofisticados, classe-média. Precisa sentir, sem conseguir nomear exatamente, que algo naquela vida está errado.
Se trocássemos o suspense policial por estrofes, Sarah poderia habitar tranquilamente o universo de Larkin. Ela vive exatamente naquele território que o poeta conhecia bem: o da vida “bem resolvida” por fora, mas corroída por dentro por dependência, frustração, desejo mal resolvido e uma vaga sensação de desperdício.

O acontecimento que rompe sua rotina — a explosão de uma casa numa noite de jantar — é, também ele, larkiniano: espetacular o suficiente para abalar tudo, banal o suficiente para ser oficialmente tratado como acidente. Nada mais coerente com o mundo do poeta que sempre desconfiou das explicações fáceis e dos finais confortáveis.
Na série, o “toad” de Philip Larkin sofre um deslocamento decisivo: se no poema ele é o trabalho, essa força viscosa que sustenta e oprime ao mesmo tempo, em Down Cemetery Road ele ganha corpo, afeto e contradição no personagem de Joel. Quando Zoë Boehm compara o marido ao “toad”, ela não está apenas falando de um homem, mas do próprio casamento como estrutura de contenção: abrigo e prisão, amor e limite, chão e imobilidade. Como o trabalho em Larkin, Joel garante a permanência dentro da ordem, mas cobra por isso com a vida interior. A virada está no gesto de Zoë: enquanto os narradores de Larkin reconhecem o peso e permanecem sob ele, ela o nomeia — e, ao nomeá-lo, começa a enfrentá-lo. O toad deixa de ser destino e passa a ser conflito.
O subúrbio como território do abismo
Philip Larkin jamais escreveu sobre grandes conspirações de Estado, mas escreveu extensivamente sobre algo talvez mais perverso: o modo como as pessoas se adaptam a uma vida que não escolheram plenamente. Seus poemas sobre viagens de trem, aniversários, fotografias antigas, condomínios silenciosos, são estudos sobre o tempo nos escavando por dentro.
Down Cemetery Road faz o mesmo movimento, só que com as ferramentas do thriller. A investigação da menina desaparecida desmonta não apenas um crime, mas uma arquitetura inteira de relações aparentemente estáveis: casamentos, vizinhanças, hierarquias sociais, pactos de silêncio. O suspense, aqui, não nasce apenas do mistério policial, mas da constatação de que aquela normalidade era uma ficção cuidadosamente mantida.
É exatamente isso que Larkin fazia verso a verso: mostrava que a normalidade é um acordo frágil. Que abaixo dela sempre há algo rangendo.

O desencanto como herança
O que une Philip Larkin a Down Cemetery Road não é apenas um verso reaproveitado como título. É uma visão de mundo. Um entendimento de que a vida raramente se organiza em torno de grandes gestos heroicos. Que o drama verdadeiro se esconde em cozinhas silenciosas, em relações de dependência mal admitidas, em existências que seguem funcionando mesmo quando já perderam o sentido.
Larkin acreditava pouco na redenção. Herron também. Ambos preferem observar personagens tentando se equilibrar dentro de sistemas que lhes são maiores: o trabalho, o casamento, o Estado, a própria passagem do tempo.
No fundo, Down Cemetery Road é exatamente aquilo que o título anuncia: uma caminhada que começa na sala de jantar de uma casa elegante e termina — simbólica ou literalmente — diante do cemitério. Não como espetáculo, mas como destino cotidiano.

Por que Philip Larkin ainda importa
Larkin segue relevante porque escreveu sobre aquilo que quase nunca envelhece: a inadequação silenciosa, o medo de desperdiçar a vida, a negociação diária entre desejo e conformismo, a consciência incômoda da morte. Seu mundo pode parecer pequeno — bibliotecas, parques, trens, casas de subúrbio —, mas é nesse espaço reduzido que ele encontra verdades universais.
Ao atravessar dessa poesia para um suspense contemporâneo como Down Cemetery Road, o que se prova é que esse desencanto não passou. Apenas trocou de linguagem. O que antes vinha em versos agora surge em forma de explosão, investigação, ameaça e conspiração. Mas o coração da história continua o mesmo: pessoas comuns dando passos hesitantes ao longo da mesma estrada que todas percorremos.
A tal “Cemetery Road”.
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