The Beatles Anthology: quando o mito finalmente vira história

Assisti a The Beatles Anthology só agora, apesar de ela ter chegado ao Disney+ em novembro. Talvez não por acaso. Há conteúdos que pedem o tempo da maturidade, e este é um deles.

Sou da geração dos filhos daqueles que transformaram os “quatro de Liverpool” em lendas e mitos. Já nasci com os boomers perdendo a linha quando falavam, ouviam ou cantavam Beatles. Sempre gostei deles. As músicas estavam no ar, nas festas de família, nos rádios antigos, nos discos herdados. Mas, por muitos anos, confesso: nunca entendi exatamente o que os fez virarem deuses entre humanos.

Talvez porque, mesmo depois de tantas décadas, essa pergunta siga em aberto. Há filmes, livros, entrevistas e documentários incontáveis tentando decifrar o fenômeno, e ainda assim o mundo parece querer mais. Não por acaso, existe hoje grande expectativa em torno do ambicioso projeto cinematográfico de Sam Mendes, atualmente em produção, que promete contar a história dos Beatles por meio de quatro filmes interligados, cada um sob o ponto de vista de um integrante. O elenco anunciado é de peso — Paul Mescal, Barry Keoghan, Joseph Quinn e Harris Dickinson — e a estreia está prevista para 2026. Mesmo depois de tudo o que já foi dito, seguimos tentando entender.

O problema é que essas narrativas quase sempre se repetem. A história se repete, as imagens se repetem, as anedotas se repetem. Tudo é dito, mas raramente explicado. A Beatlemania é mostrada como fenômeno, não como processo. Como se tivesse sido um clarão súbito, um milagre coletivo inexplicável.

E não foi.

Quando eles ficaram astronômicos, não foi do dia para a noite. Antes de serem mito, já eram amigos. Antes de serem indústria, já eram banda. Antes de serem um fenômeno global, já acumulavam quase dez anos de estrada invisível: Liverpool, Hamburgo, noites mal dormidas, palcos precários, disciplina quase militar, repertório gigantesco, formação musical forjada no improviso e na resistência. A explosão foi rápida. A construção, não.

Talvez o maior mérito de The Beatles Anthology seja justamente este: desmontar o mito para revelar o processo.

A Anthology nasce nos anos 1990 em um momento emocionalmente delicado da história da banda. Décadas após a separação, depois de processos judiciais, ressentimentos, silêncios prolongados e feridas que nunca cicatrizaram por completo, Paul McCartney, George Harrison e Ringo Starr decidem, finalmente, revisitar tudo juntos.

Não era apenas um projeto de memória. Era um gesto político, artístico e afetivo: retomar a própria história das mãos de terceiros. Durante anos, críticos, biógrafos, jornalistas e fãs narraram os Beatles por eles. Pela primeira vez, os próprios Beatles assumiam o controle da narrativa.

A Anthology foi concebida como um projeto total: série documental, livros, discos, arquivos, músicas inéditas. Não para alimentar nostalgia, mas para organizar o passado, dar sentido ao caos, reposicionar cada um dentro da história comum. Pela primeira vez, os três se sentaram juntos não para discutir contratos ou direitos, mas para lembrar, e se lembrar.

Há algo de profundamente humano nesse movimento. Não é apenas a reunião de gigantes da música. É o reencontro de três homens que foram muito mais do que colegas de banda. Foram jovens que cresceram rápido demais, suportaram mais pressão do que qualquer grupo antes deles, erraram, magoaram, se afastaram, sobreviveram.

Anthology é, no fundo, um ritual de reconciliação com o próprio passado.

Não por acaso, desse processo nasce o gesto mais simbólico dos anos 1990: os três retomam demos caseiras gravadas por John Lennon nos anos 1970 e as transformam em canções completas. “Free As a Bird” e “Real Love” não são apenas lançamentos póstumos. São tentativas de fechar círculos. De cantar com quem já não estava mais ali. De estender artificialmente um tempo que a vida interrompeu.

Mais uma vez, os Beatles saíram à frente. Em um mundo que só começava a discutir arquivo, memória e legado, eles já faziam isso em escala monumental, décadas antes dessa conversa se tornar comum.

Ontem, 8 de dezembro, completaram-se 45 anos da morte de John Lennon. Para a geração que já nasceu sob a obsessão da “volta dos Beatles”, aquele 8 de dezembro de 1980 não foi apenas uma tragédia: foi o tiro que matou uma esperança global, a de rever os quatro amigos de Liverpool juntos novamente.

A morte de Lennon, prematura e ainda inexplicável aos 40 anos, encerrou algo que todos os filmes e documentários posteriores — incluindo o próprio gesto de resgate da Anthology — continuam a perseguir: a recuperação da amizade e do amor que uniram a banda que definiu o rock, o marketing, o pop e a celebridade no século 20. Mais do que isso, impediu uma reconciliação pública entre Lennon e McCartney, um diálogo que o mundo esperava testemunhar.

Essa ausência ajuda a explicar muita coisa. Explica as reedições intermináveis, o retorno constante aos arquivos e até o fato de que, décadas depois, projetos como os filmes de Sam Mendes estejam em plena produção, como mais uma tentativa coletiva de imaginar o que a história não permitiu acontecer.

Talvez por isso The Beatles Anthology só faça pleno sentido agora.

Porque ela não explica apenas como os Beatles surgiram. Ela explica o que acontece com as pessoas quando o mundo as transforma em lenda cedo demais. Mostra talentos, sim. Mas também inseguranças, vaidades, disputas, desalinhamentos, exaustões. Humaniza o mito sem diminuí-lo. Ao contrário: engrandece-o.

Os Beatles são tão singulares que, mais de 50 anos após a separação, o mundo ainda quer saber mais deles: da música, da febre, da descoberta, da amizade, das brigas, das fissuras. Anthology nasceu para ser a palavra final, lançada poucos anos antes da morte de George Harrison. E, mais uma vez, é revelador perceber como a banda foi — e segue sendo — radicalmente diferente de tudo o que veio antes e depois.

Hoje entendo melhor por que eles foram tratados como deuses. Não apenas pela música — que, por si só, já bastaria —, mas porque nunca mais houve uma convergência tão absoluta entre talento, timing, juventude, ruptura cultural e impacto global.

Vista agora, The Beatles Anthology não é um memorial. É um acerto de contas com a história. E talvez, acima de tudo, um lembrete delicado de que, por trás de toda lenda, existiram quatro rapazes de Liverpool que só queriam tocar, e acabaram mudando tudo.


Descubra mais sobre

Assine para receber nossas notícias mais recentes por e-mail.

Deixe um comentário