No episódio final, Quem Ama Não Mata, a série Angela Diniz: Assassinada e Condenada chega à sua conclusão ao reconstituir o absurdo julgamento de Doca Street, quando a tese da “defesa da honra” fez história por motivos tão vergonhosos quanto persistentes. Antes de comentar o impacto da série, vamos ao recap do último capítulo.
A abertura mostra Ângela boiando no mar, poucas horas antes de seu assassinato. Em seguida, já no presente, vemos Doca concedendo uma entrevista na televisão, repetindo — quase palavra por palavra — os argumentos que o antecederam ao crime: que deixou tudo por ela, que ela não queria que ele vivesse outra vida, que disputava a guarda da filha mas não abandonava a bebida, que não aceitava a ideia de ter outro filho com ele. Alega ainda que só a “controlava” porque Ângela tinha, segundo ele, uma “compulsão por provocar os homens”. Finaliza dizendo que nunca amará outra mulher como amou Ângela, e que sente saudade dela.

A entrevista, no entanto, foi completamente guiada pelo advogado Evandro Lins e Silva. Ao final da gravação, Doca sussurra: “Esqueci alguma coisa?”. Não, ele foi “perfeito”. A imprensa se derrete por sua suposta sinceridade, e três anos depois do feminicídio, o caso finalmente vai a julgamento na pequena Cabo Frio. A família de Ângela assiste indignada. Dona Maria, a mãe, insiste em estar presente.
Os amigos da socialite se reúnem, devastados. Paira um desconforto: o advogado de acusação, Evaristo de Moraes Filho, embora brilhante, é ex-aluno e afilhado de Evandro. Seria um embate entre mestre e pupilo ou apenas um teatro para a opinião pública?
O julgamento começa sob forte comoção na porta do Fórum, onde parte da população apoia Doca enquanto outros o chamam de assassino. O sorteio do júri antecipa o desastre: apenas homens de meia-idade e duas mulheres igualmente maduras. Até o rol de testemunhas é desequilibrado — só uma amiga mulher fala por Ângela.
A descrição da cena do crime demonstra uma execução: tiros à queima-roupa, sem qualquer chance de defesa. Mas no banco dos réus, Doca conta sua versão melodramática. Diz que Ângela começou a beber cedo, reencontrou a “alemãzinha” na praia e que confessou querer levá-la para casa, o que o deixou transtornado. Afirma que pediu para ela conter a bebida, mas que ela estava “incontrolável”. Já em casa, segundo ele, Ângela teria anunciado que sairia, provocando uma briga. Doca dramatiza: implorou para que ela ficasse, foi agredido, ouviu gritos da namorada. Saiu para o carro com o “coração despedaçado”, dirigindo sem rumo, tomado pelo amor que “o levava à loucura”.
Diz que voltou para “fazer as pazes”, mas que Ângela teria exigido que ele a dividisse com outros homens e mulheres, e que na praia escolheria alguém para levar para casa. Ao gritar “como um animal ferido”, teria levado um tapa. Humilhado, pegou a arma e disparou. “Não sei quantas vezes. Só sei que matei a mulher que amava”, conclui em lágrimas — lágrimas que cruzam o olhar com Evandro, que aprova, satisfeito. Tudo, absolutamente tudo, foi ensaiado.

A acusação tenta reverter o teatro. Mostra que Doca era ciumento, violento e sustentado por Ângela; que ela estava apaixonada, mas vulnerável. Nada disso quebra a narrativa machista que se impõe na sala. Evandro reforça o “passado turbulento” de Ângela — casos com homens casados, chantagens, abandono dos filhos — transformando sua liberdade em culpa. Pinta-a como “leviana”, “devassa”, “pantera”, enquanto apresenta Doca como um “homem bom” que teria matado para defender sua honra.
Mentor e pupilo travam embates formais, mas Evaristo toca no essencial: os ferimentos revelam frieza. Doca teve tempo para parar. Não matou por amor — matou por ódio e covardia. Levanta a pergunta que ecoa há 50 anos: quem ama, mata? E mais: por que Ângela continuou sendo assassinada mesmo depois de morta, agora com sua memória sendo triturada?
No intervalo, Doca se desespera achando que a tese de crime passional desabou, mas Evandro, seguro, diz que agora é com ele. E performa: discursa teatralmente, mas com convicção histórica, repetindo cada barbaridade que sabemos ter sido dita no julgamento real. “Essa moça queria morrer”, afirma. O estômago revira. O absurdo é que isso foi dito mesmo — e funcionou. Doca recebeu pena irrisória: dois anos com sursis, saindo livre. Só em 1981, após pressão do movimento feminista, foi condenado novamente, a 15 anos, cumprindo mais da metade em liberdade. O segundo júri reconheceu homicídio doloso qualificado, mas não desfaz o primeiro assassinato de caráter.
A série perde força quando aborda o movimento Quem Ama Não Mata, citando casos de feminicídio sem emoção e sem articulação dramática, embora lembre um fato crucial: apenas em 2023 a Justiça brasileira declarou inconstitucional a tese da “defesa da honra”.

“A justiça chegou tarde, mas Ângela deixou um legado”, diz a narração final.
Resgatar a história de Ângela Diniz é indispensável. Eu era pequena quando tudo aconteceu e lembro o quanto o país ficou traumatizado. A liberdade que Ângela buscava — sexual, social, pessoal — ainda não recebeu uma narrativa plenamente justa. A série tenta fazer esse resgate, mas tropeça em sua execução. Ainda assim, tem um mérito: pela primeira vez, expõe um Doca Street sem verniz — inseguro, oportunista, violento, sem consciência do mal que fez. E isso já significa muito.
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