Rowan Atkinson, Mr. Bean e o raro talento de atravessar gerações

Entramos oficialmente no mês do Natal, e os filmes temáticos voltam a dominar o Top 10, sem qualquer surpresa. Histórias embaladas por neve, solidão momentânea e aquele encontro final de famílias e amigos, celebrando união, reconciliação e amor. Honestamente, um clichê eterno e sempre em alta demanda.

Para os iniciados, porém, ver Homem vs Bebê liderando o ranking da semana está longe de ser inesperado. Mesmo sem ser oficialmente Mr. Bean, Rowan Atkinson ocupa novamente o centro do palco. O personagem não se chama Bean, mas carrega seu DNA: a fisicalidade, o caos doméstico, o homem comum em guerra com o mundo. Um ícone dos anos 1990 que, décadas depois, segue perfeitamente funcional no streaming. Uma lenda que não precisa se anunciar, basta aparecer.

Mr. Bean é um daqueles fenômenos que parecem desafiar qualquer lógica industrial. Criado no início dos anos 1990, o personagem teve apenas 15 episódios originais e, ainda assim, se tornou uma das figuras mais reconhecíveis da cultura pop global. Sua força nunca esteve na quantidade, mas na clareza da proposta: um humor quase mudo, baseado no corpo, no tempo cômico e na observação cruel — e infantil — do cotidiano.

O que muitas vezes se esquece é que Bean não nasce da ingenuidade, mas de um ator extremamente treinado. Rowan Atkinson é produto de uma formação rigorosa, que começa fora das artes — na engenharia elétrica — e se consolida no teatro universitário de Oxford, no fim dos anos 1970. Ali, ele circula pelo mesmo ecossistema criativo que revelou Emma Thompson, Hugh Laurie, Stephen Fry e Tony Slattery: um ambiente em que sátira, teatro e precisão técnica conviviam de forma orgânica. Sim, esses gênios foram contemporâneos, e, se adicionarmos ao grupo o diretor Richard Curtis, responsável por Love, Actually (talvez o grande filme natalino das últimas décadas), tudo ganha outra perspectiva, concordam?

Embora Atkinson não integrasse diretamente o elenco de The Cellar Tapes — espetáculo que se tornaria o marco daquela geração —, ele pertence ao mesmo momento histórico e intelectual. O que o distingue é o caminho escolhido: enquanto muitos de seus contemporâneos se projetaram sobretudo pelo verbo e pela ironia literária, Atkinson seguiu na direção oposta, apostando na fisicalidade, no silêncio e na engenharia da gag. Mr. Bean (uma homenagem à Buster Keaton) surge dessa escolha consciente: um personagem criado por alguém que domina a palavra, mas decide abdicar dela.

Antes de Bean, o público britânico já conhecia outro lado de Atkinson. Em Not the Nine O’Clock News, ele mostrou domínio absoluto da sátira verbal e política. Em Blackadder, criou Edmund Blackadder, um dos personagens mais sofisticados da comédia britânica, dependente do texto e do ritmo. Esses trabalhos deixam claro que Bean não é limitação, é depuração. Aliás, recomendo fortemente buscar no YouTube clipes dessa fase: são de passar mal de rir. O meu favorito é Macbeth. Fica a dica.

Ao longo da carreira, Atkinson fez questão de não ficar prisioneiro do personagem. Vieram os filmes de Johnny English, paródia consciente do mito de James Bond; e, mais tarde, uma guinada inesperada ao interpretar Jules Maigret, em uma abordagem contida, melancólica e dramaticamente respeitável. Poucos atores transitam com tamanha naturalidade entre o pastelão físico e a introspecção clássica.

Ainda assim, o público nunca deixou Mr. Bean ir embora. Filmes, animações, reprises incessantes e, mais recentemente, a viralização em redes sociais mantiveram o personagem vivo — muitas vezes independentemente da vontade do próprio ator.

É nesse contexto que entram Man vs Bee e sua sequência, Man vs Baby, sucessos recentes da Netflix que rearticulam o legado de Atkinson para a era do streaming. Em 2022, Man vs Bee estreou como uma minissérie de nove episódios em que o protagonista Trevor Bingley trava uma verdadeira guerra com uma abelha dentro de uma mansão de luxo — uma premissa absurda que rendeu milhões de horas assistidas globalmente nas primeiras semanas e o colocou no Top 10 da plataforma, um feito notável para um título que aposta no humor físico clássico em meio a um catálogo saturado de produções high-concept.

Três anos depois, em dezembro de 2025, Man vs Baby chega como sequência natural: após a experiência desastrosa com a abelha, Trevor agora é contratado para cuidar de um apartamento luxuoso em Londres e acaba enfrentando um adversário ainda mais inesperado — um bebê deixado à sua porta, que ele não pediu e não sabe como lidar.

As primeiras resenhas e os índices de audiência indicam que a série estreou forte no catálogo de fim de ano, figurando entre os títulos mais acessados no lançamento. Um reflexo não apenas do reconhecimento imediato do público, mas da familiaridade que os espectadores sentem com a fisicalidade e o timing cômico de Atkinson.

Embora as reações críticas a Man vs Baby variem — de elogios por seu charme natalino a ressalvas sobre um tom mais sentimental e menos frenético que o antecessor —, a resposta de audiência evidencia algo central: o fascínio pela performance de Atkinson permanece intacto, mesmo quando deslocado para uma nova dinâmica narrativa.

Bingley não é Bean — embora a série brinque deliberadamente com isso, inclusive com personagens confundindo os nomes —, mas também não é seu oposto. É uma variação amadurecida, ligeiramente mais melancólica, deslocada agora para ambientes domésticos, familiares, natalinos. O humor continua físico; o caos, inevitável. O que muda é o contexto e a forma como ele dialoga com diferentes gerações.

Talvez esse seja o feito mais impressionante de Atkinson: falar simultaneamente com públicos que cresceram vendo Mr. Bean na TV aberta, jovens que o descobriram por clipes virais e famílias que agora o encontram no streaming. Seu humor não depende de referências de época, nem de ironias passageiras. Ele depende de algo mais básico e duradouro: o desconforto humano de querer se encaixar e falhar.

Curiosamente, o criador de um dos personagens mais silenciosos da cultura pop também protagonizou um dos discursos mais firmes da cultura britânica recente em defesa da liberdade de expressão. A partir de 2012, Atkinson se posicionou publicamente contra leis que ampliavam o conceito de “discurso de ódio”, argumentando que a sátira — e a comédia em geral — depende do direito de incomodar.

Para ele, a liberdade de expressão não existe para proteger discursos confortáveis, mas os desconfortáveis. Não se trata de defender preconceito, e sim de preservar o espaço da crítica, da ironia e do exagero, elementos estruturais do humor britânico. O discurso revela o intelectual por trás do silêncio de Bean: alguém plenamente consciente do papel político da comédia.

Em um catálogo de streaming saturado por narrativas complexas, Rowan Atkinson oferece algo quase arcaico e justamente por isso universal. Cada tropeço, cada silêncio constrangedor, cada olhar lateral é fruto de cálculo, não de improviso. Ele sempre tratou a comédia como estrutura, matemática, engenharia emocional.

No fim, Atkinson encontrou uma solução elegante para a própria armadilha do sucesso. Ele não ressuscita Mr. Bean oficialmente, mas também não o abandona. Cria ecos, variações, personagens adjacentes e aceita que, para o público, todos eles carregam algo daquele homem silencioso dos anos 1990.

Mais do que um personagem, Rowan Atkinson se tornou um raro ponto de contato entre gerações. Um ator formado no teatro universitário britânico que atravessou a televisão aberta, o cinema global, a era dos DVDs, a internet e o streaming, sempre com o mesmo princípio: fazer rir sem precisar explicar.


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