Como publicado na Revista Bravo!
Jane Austen escreveu poucos livros: seis romances completos ao todo, dos quais apenas cinco foram publicados enquanto ela ainda estava viva. Teve reconhecimento em vida, especialmente entre leitores atentos e círculos literários informados, mas não foi uma autora célebre nem amplamente celebrada como entendemos sucesso hoje. Como muitas mulheres de seu tempo, publicou seus romances anonimamente (“By a Lady”), o que já impunha um limite claro à projeção pública. Ainda assim, seus livros venderam bem para os padrões da época, receberam críticas positivas e circularam com constância entre a classe média e a elite leitora inglesa.
Jane viveu com relativo conforto, mas sem independência financeira plena. Sua consagração definitiva veio 53 anos após sua morte, em 1870, quando seu sobrinho, Edward, Lord Brabourne, publicou A Memoir of Jane Austen, a primeira biografia da autora. O livro apresentou ao público uma figura até então quase invisível: uma mulher que escrevera romances brilhantes longe dos holofotes, em silêncio doméstico, sem reconhecimento pleno. A partir dali, Austen deixou de ser apenas “uma autora de bons romances” para se tornar uma personagem cultural, finalmente reconhecida como uma das grandes romancistas da língua inglesa.

Para alguém que nos presenteou com algumas das histórias de amor mais duradouras da literatura, há um curioso mistério em torno de quem Jane Austen realmente foi: se amou alguém, como era sua personalidade, o que causou sua morte precoce. Essas lacunas continuam a alimentar livros, séries e filmes que tentam — quase sempre em vão — reimaginá-la. Falta a muitos roteiristas e escritores contemporâneos exatamente aquilo que Austen dominava: precisão emocional, ironia e economia de palavras.
Em 16 de dezembro de 2025, Jane Austen completaria 250 anos. Datas redondas costumam provocar homenagens previsíveis, mas o caso de Austen desafia o tom cerimonial. Ela não sobreviveu ao tempo como relíquia literária: permanece viva porque continua sendo lida, relida, adaptada, reinterpretada e, sobretudo, discutida. Poucos autores clássicos mantêm essa vitalidade sem depender da reverência acadêmica. Austen atravessa gerações porque escreve sobre temas que não envelhecem: expectativas sociais, desigualdade, desejo feminino, dinheiro, escolhas — e as consequências inevitáveis de cada uma delas.
Para quem insiste em reduzir seu legado a “romances para mulheres românticas”, vale lembrar que foi inspirada em Persuasão — meu livro favorito — que Virginia Woolf escreveu Mrs. Dalloway, em 1924. Ambos se estruturam em torno do arrependimento e da memória: protagonistas que revisitam, em silêncio, escolhas fundamentais feitas no passado. Em ambos, a subjetividade feminina se constrói a partir do que não é dito. Woolf reconheceu isso explicitamente em seu belíssimo ensaio sobre Persuasão, no qual elogia a capacidade de Austen de mostrar “não apenas o que as pessoas dizem, mas o que deixam de dizer”.

Por isso, é raso pensar nos livros de Austen como meros romances “de época”, associados a vestidos império, salões elegantes e casamentos bem-sucedidos. Essa leitura ignora o essencial. Jane Austen escreveu sobre limites: limites impostos às mulheres, às classes sociais, às possibilidades de mobilidade e até às formas de amar. Seus livros não romantizam o mundo que retratam — expõem suas regras com ironia, precisão e, muitas vezes, crueldade. Curiosamente, seus antagonistas costumam ser as personagens por quem ela demonstra maior empatia.
É importante lembrar também que Austen escreveu em um período de profundas transformações. Viveu à sombra das Guerras Napoleônicas, da consolidação da burguesia inglesa e de um sistema social rigidamente hierarquizado. É verdade que ela raramente aborda temas como a escravidão de forma direta — e suas personagens lidam com problemas que hoje poderiam ser resumidos, sem muita injustiça, como “champagne problems”. Ainda assim, ela nunca ignora as estruturas que produzem essas tensões. Sua revolução acontece no campo do olhar. Ao reduzir o campo de ação — vilas pequenas, bailes, visitas, cartas —, ela amplia o alcance psicológico. Cada gesto social é um jogo de poder. Cada silêncio carrega cálculo. Cada escolha amorosa é também econômica.
Essa consciência atravessa toda a sua obra. Em Orgulho e Preconceito, o amor entre Elizabeth Bennet e Darcy só se realiza depois que ambos revisam suas posições sociais e morais. Em Razão e Sensibilidade, o conflito entre emoção e prudência é também um comentário sobre sobrevivência feminina. Em Mansfield Park — outro favorito meu, e talvez seu romance mais desconfortável —, Austen questiona frontalmente a moralidade da elite inglesa, incluindo, ainda que de forma velada, sua relação com a escravidão. Gosto de pensar que ela teria avançado ainda mais nessas questões se não tivesse morrido repentinamente, aos 42 anos. Já em Persuasão, seu livro mais melancólico e publicado após sua morte, o tempo não é um aliado romântico, mas uma força implacável que cobra seu preço. É um romance de maturidade rara.


O que distingue Austen de tantos de seus contemporâneos é sua recusa ao sentimentalismo fácil. Seus finais felizes não são ilusões: são acordos possíveis dentro de um sistema desigual. O casamento, em Austen, nunca é apenas um desfecho romântico — é um contrato social, e ela faz questão de que o leitor compreenda isso.
Talvez seja por isso que sua obra dialogue tão bem com o século 21. Em um momento histórico em que discutimos o custo emocional das escolhas, a precarização das relações e o impacto das estruturas sociais sobre a vida íntima, Austen soa surpreendentemente moderna. Ela não oferece respostas simples. Seus livros exigem leitura atenta, desconforto e reflexão. Não há vilões fáceis. Há sistemas inteiros operando silenciosamente.
O fascínio contemporâneo por Jane Austen também se explica pela forma como sua obra resiste às adaptações. Cada geração tenta traduzi-la para sua própria linguagem — do cinema clássico às releituras pop —, mas o núcleo permanece intacto. A ironia não se perde. A crítica social não desaparece. Austen sobrevive porque sua escrita é estruturalmente sólida: funciona no papel, na tela e no debate cultural.


Celebrar os 250 anos de Jane Austen não é olhar para trás com nostalgia, mas reconhecer uma autora que compreendeu, como poucas, a engrenagem social que molda afetos, ambições e fracassos. Ela escreveu sobre mulheres que pensam, observam e escolhem, mesmo quando o mundo insiste em limitar essas escolhas. E talvez seja exatamente por isso que continuamos voltando a ela.
Jane Austen não nos ensina como amar melhor.
Ela nos ensina a ver melhor.
E isso, dois séculos e meio depois, segue sendo uma das formas mais poderosas de literatura.
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