Quem foi Lily Safra

Para uma geração mais jovem, o nome Lily Safra talvez surja agora pela primeira vez embalado pelo suspense de um documentário da Netflix. Em Murder in Monaco, ela aparece associada a uma morte trágica, cercada de teorias e perguntas que parecem não se encerrar. Mas reduzir Lily Safra a esse episódio — ou à condição de viúva de um banqueiro bilionário — é ignorar uma trajetória muito mais longa, complexa e reveladora sobre poder, dinheiro, sobrevivência e imagem pública ao longo do século 20.

Lily Safra nasceu em 1934, em Porto Alegre, filha de imigrantes judeus europeus. Teve uma infância modesta, mas marcada por educação rigorosa e domínio de línguas — inglês e francês desde cedo. Ainda jovem, mudou-se para o Sudeste e passou a circular por ambientes sociais onde ambição, elegância e oportunidade se cruzavam. Era o início de uma personagem que aprenderia a se mover com precisão em mundos fechados.

Ao longo da vida, Lily se casou quatro vezes, um dado frequentemente apresentado de forma simplista, quase caricatural. Mas seus casamentos ajudam a entender como ela atravessou, e sobreviveu, a diferentes universos de poder.

O primeiro foi com Mario Cohen, empresário argentino do setor têxtil, que Lily conheceu ainda muito jovem em círculos sociais entre o Brasil, a Argentina e o Uruguai. Com ele, teve três filhos — Adriana, Eduardo e Cláudio (morto em um acidente de carro em 1989). Foi um casamento tradicional, que lhe proporcionou uma vida internacional precoce. O relacionamento terminou em separação, sem escândalo público.

O segundo casamento, decisivo em sua trajetória, foi com Alfredo Monteverde, fundador da rede Ponto Frio, que Lily conheceu no Brasil, em ambientes empresariais e sociais do Rio de Janeiro. Monteverde era um empresário em ascensão, mas enfrentava um quadro severo de depressão. Em 1969, ele morreu oficialmente por suicídio. As reportagens da época mencionam dois tiros no peito, um detalhe incomum que, décadas depois, passou a alimentar especulações, sobretudo em leituras biográficas posteriores. Ainda assim, é fundamental registrar: não houve reabertura de investigação nem reclassificação do caso do ponto de vista jurídico. O que permanece não é prova de crime, mas uma inquietação narrativa típica de tragédias cercadas por poder, dinheiro e expectativas sobre como o luto deveria se manifestar.

Desse casamento, Lily herdou uma participação relevante no Ponto Frio, um dos pilares concretos de sua fortuna. Décadas depois, venderia sua fatia ao Grupo Pão de Açúcar, numa transação bilionária que ainda renderia uma longa disputa judicial, vencida por ela em 2015.

Foi nesse período posterior à morte de Monteverde que Lily passou a circular de forma mais consistente no alto circuito social europeu. Antes mesmo de se casar novamente, já frequentava ambientes ligados à aristocracia, à diplomacia e ao colecionismo de arte, aproximando-se inclusive da família real britânica. Esse capital social — muitas vezes ignorado — ajuda a entender por que sua ascensão não foi apenas financeira, mas também simbólica.

Em 1972, Lily se casou brevemente com o empresário Samuel Bendahan, a quem conheceu na Europa. O casamento foi curto e posteriormente anulado. Cercado por versões folclóricas da imprensa social da época, ele teve pouca relevância prática ou patrimonial e terminou rapidamente, sem deixar marcas duradouras em sua trajetória. Ao contrário do que por vezes se sugere, não foi esse casamento que a tornou mundialmente conhecida.

A projeção global de Lily Safra começa, de fato, em 1976, quando ela se casa com Edmond J. Safra, banqueiro libanês-brasileiro e membro de uma das famílias financeiras mais poderosas do mundo. Os dois se conheceram em círculos financeiros e sociais internacionais. O casamento durou 23 anos e colocou Lily definitivamente no centro do capitalismo global, entre Mônaco, Genebra, Paris, Nova York e a Riviera Francesa.

Edmond Safra sofria de Parkinson e morreu em 1999, em um incêndio criminoso em seu apartamento em Mônaco, um caso que chocou o mundo, alimentou teorias conspiratórias e terminou com a condenação de seu enfermeiro. É esse episódio que Murder in Monaco revisita. Mas o que veio depois também define quem foi Lily Safra.

Embora a maior parte da fortuna de Edmond tenha sido destinada à Fundação Edmond J. Safra, Lily herdou ativos suficientes para se tornar uma das mulheres mais ricas do planeta. E, a partir daí, escolheu um caminho menos visível e mais duradouro.

Lily Safra se realizou na filantropia. Não como gesto simbólico, mas como projeto estruturado. Presidiu a fundação do marido, financiou hospitais, universidades e centros de pesquisa em diversos países, com atenção especial às doenças neurológicas, incluindo o Parkinson, que atravessou sua vida pessoal. Em 2012, leiloou joias históricas pela Christie’s, arrecadando dezenas de milhões de dólares para pesquisas médicas.

Também foi dona da lendária Villa Leopolda, na Riviera Francesa, uma das mansões mais caras do mundo, símbolo máximo de um luxo quase mítico e, ao mesmo tempo, da distância entre sua vida privada e a curiosidade pública incessante.

Parte do interesse renovado por sua história se deve também ao livro Gilded Lily, da jornalista Isabel Vincent. Trata-se de uma biografia não autorizada, baseada em fontes secundárias e leituras interpretativas. O livro não é proibido no Brasil, mas nunca foi lançado comercialmente no país nem traduzido, em meio a resistências jurídicas e editoriais. Deve ser lido como uma obra de questionamento, não como fonte conclusiva ou prova factual. Isabel também é uma das vozes mais críticas à Lily no documentário da Netflix.

Lily Safra morreu em 9 de julho de 2022, aos 87 anos, em Genebra. Seu nome retorna agora ao debate público não pelo legado que construiu ao longo de décadas, mas por um crime que nunca deixou de despertar fascínio. Descobri-la hoje é um convite a ir além da narrativa fácil e entender que Lily Safra foi, acima de tudo, uma mulher que atravessou tragédias sucessivas, reinventou seu lugar no mundo e transformou fortuna em legado.


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