Assassinato em Mônaco: o true crime que troca verdade por drama

Assassinato em Mônaco parte de um caso que nunca deixou de intrigar: a morte do banqueiro bilionário libanês-brasileiro Edmond Safra e da enfermeira Vivian Torrente, em 1999, dentro de um apartamento ultrasseguro em Mônaco. Havia ali todos os elementos para um documentário rigoroso sobre poder, paranoia, erro humano e os limites da segurança extrema. O que a Netflix entrega, porém, é outra coisa. Como sempre, aliás.

O filme pertence claramente à “linha Netflix” de true crime: a narrativa vem antes do compromisso com a verdade. Não no sentido de inventar fatos, mas de reorganizá-los, inflá-los e relativizá-los de modo a manter o espectador em permanente estado de suspeita, mesmo quando a Justiça já respondeu às perguntas centrais do caso. Mas o diretor Hodges Usry tem uma virada surpreendente na manga.

Um crime explicado… e artificialmente reaberto

Os fatos essenciais são conhecidos. O incêndio que matou Safra e Torrente foi pequeno, iniciado em uma lixeira. Não deveria ter sido fatal. O que matou foi o pânico. Convencido por um de seus enfermeiros, o americano e ex-integrante das Forças Especiais dos Estados Unidos, de que havia invasores armados no apartamento, Safra se trancou em um quarto de pânico e se recusou a abrir a porta para os bombeiros. A falsa ameaça atrasou o resgate e selou o desfecho.

O responsável por essa mentira foi Ted Maher, que confessou ter iniciado o fogo para encenar um resgate heroico e foi condenado em 2002 por incêndio criminoso com resultado morte. Nada disso é novo. Nada disso é juridicamente controverso. Ainda assim, Assassinato em Mônaco age como se tudo estivesse em aberto porque Ted é o narrador e vende, muito bem, a versão do homem errado no lugar errado, falsamente condenado por um crime que não cometeu. Sendo ele um americano acusado e condenado por estrangeiros, há muita controvérsia na história fantasiosa que ele apresenta como versão final, uma que Hodges Usry abraça como verdadeira e usa para nos conduzir por mais de uma hora, com acusações sucessivas que reforçam a narrativa de Maher. Até que…

O problema não é levantar dúvidas: é quem as levanta

O documentário escolhe um caminho perigoso. A narrativa é conduzida justamente pela pessoa considerada culpada pela Justiça. Não como objeto de análise crítica, mas como fio condutor emocional. A partir daí, o roteiro passa a privilegiar reviravoltas, entrevistas excêntricas e teorias conspiratórias, muitas delas já rejeitadas em investigações oficiais e apresentadas de forma unilateral.

Caluniadores que nunca conseguiram sustentar suas acusações nos tribunais ganham espaço para sugerir complôs envolvendo máfia, governos, interesses financeiros e até, na verdade principalmente, a viúva Lily Safra. Tudo isso sem o menor compromisso com provas, contraditório ou contextualização rigorosa.

Lily, uma brasileira que já era milionária quando se casou com Edmond e que teve um ex-marido que cometeu suicídio, foi casada quatro vezes, em circunstâncias que o filme trata como curiosas e insinuantes, como o fato dele ter tirado a própria vida com dois tiros no peito. Ela nunca foi bem aceita pelos irmãos de Edmond, que não aparecem no documentário, mas que, segundo uma amiga, desconfiariam de seu envolvimento na morte do banqueiro. Sem fatos concretos, a teoria conspiratória beira a calúnia.

O resultado é desconcertante. Acusações graves são tratadas quase como entretenimento. O filme brinca com a ideia de conspiração, cria um clima de thriller e aposta no choque, mesmo quando o que está em jogo é a morte real de duas pessoas.

Ritmo de filme de ação, responsabilidade de ficção

É impossível negar: Assassinato em Mônaco é ágil. A edição é eficiente, as entrevistas são montadas para gerar impacto, as viradas funcionam. Em vários momentos, o documentário se assiste como um filme de ação ou espionagem. Quase “divertido”. Até a surpresa final.

Depois de escapar da prisão em Mônaco, ser recapturado e cumprir mais da metade da sentença antes de ser deportado para os Estados Unidos, Ted Maher volta a protagonizar o improvável.

Nos quinze minutos finais, depois de insinuar envolvimentos de Lily Safra e até da Família Real de Mônaco, Ted, que mudou de nome para Jon Green, passa a ser associado a uma série de novos problemas com a Justiça americana. De roubo de carro à acusação de conspirar para assassinar a própria nova esposa por meio de um assassino de aluguel, ele acabou novamente preso e hoje cumpre pena até 2031, no Texas.

Ao revelar isso, Hodges Usry entra em cena como narrador e personagem, numa tentativa de defender o próprio documentário. Segundo ele, quatro anos de sua vida foram dedicados ao projeto. Ainda assim, a pesquisa se mostra frágil. Ted mentiu sobre ter sido militar e insiste, mais uma vez, em sua inocência. Sua primeira esposa, Heidi, que aparece em imagens de arquivo quando ainda acreditava na versão do ex-marido, mudou de posição após a fuga da prisão em Mônaco, rompeu com ele e se afastou com os filhos. O documentário sugere que Heidi teria sido subornada por Lily Safra, mas, provavelmente, fez um acordo após um processo judicial. Como Heidi se recusou a participar do filme e Lily faleceu em 2022, não há como ouvir o outro lado.

E é aí que mora o problema.

Estamos falando de um crime real, de uma investigação concluída, de pessoas que morreram e de outras que seguem vivas sob suspeitas recicladas. O tom leve, a edição nervosa e o apelo ao mistério transformam tudo isso em espetáculo. O filme apenas reencena dúvidas antigas para manter o público engajado por quase duas horas e, ao final, deixa claro que também foi enganado e segue enganando o espectador.

O vazio como estratégia

Pior do que revisitar um caso encerrado sem apresentar qualquer nova evidência relevante é o próprio documentário admitir, em sua conclusão, que sua pesquisa é falha. Isso pode funcionar dramaticamente, mas é frágil e eticamente questionável.

A tragédia de Edmond Safra não se torna mais complexa ao ser envolta em fumaça narrativa. Pelo contrário. Perde clareza, perde gravidade e perde humanidade.

No fim, o documentário diz mais sobre os limites do true crime contemporâneo do que sobre o crime que pretende investigar. Quando o storytelling passa a valer mais do que a verdade, o mistério deixa de ser ferramenta de reflexão e vira apenas mais um produto.

E sim, Jon Green, ou Ted Maher, está preso. Mas quem ele é, de fato? Nem essa resposta Assassinato em Mônaco ousa investigar. Não teria sido o óbvio?


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