1975: quando Hollywood decidiu encarar o mundo sem filtro

O documentário da Netflix sobre 1975, narrado por Jane Fonda, é muito mais interessante — e mais honesto — do que o slogan que o acompanha. Ao afirmar que aquele teria sido “o ano mais forte da história do cinema”, ele provoca, simplifica e exagera. Mas, passada a frase de efeito, o que o filme realmente propõe é algo mais sofisticado: uma leitura consistente de como arte, política e indústria se encontraram num ponto de inflexão e de como esse encontro ajuda a entender não apenas o cinema que veio depois, mas o mundo que vivemos hoje.

Minha discordância com o rótulo absoluto não invalida o diagnóstico central. Pelo contrário. O documentário é preciso ao tratar 1975 não como ápice técnico ou narrativo — esse posto ainda pertence, para mim, a 1939 —, mas como ano-síntese de uma virada moral. Hollywood vinha do trauma do Vietnã, do colapso institucional escancarado pelo Watergate e da erosão definitiva da confiança em autoridades e discursos oficiais. Isso não aparece nos filmes como tese explícita, mas como atmosfera: personagens exaustos, instituições corroídas, finais que se recusam a oferecer conforto.

A escolha de Jane Fonda como narradora não é acessória. Sua voz carrega o peso simbólico exato para essa história. Não apenas por ter sido uma das figuras mais politicamente engajadas de Hollywood naquele período, mas porque sua própria trajetória corporifica o choque entre entretenimento, militância e reação conservadora. Ela não narra 1975 de fora; ela é parte do conflito que o filme analisa.

O documentário acerta ao aproximar obras muito distintas como expressões da mesma inquietação histórica. O nascimento do blockbuster moderno não surge em oposição ao cinema político, mas em tensão com ele. Jaws transforma o medo difuso e invisível em espetáculo, ecoando uma sociedade que já não sabe de onde vem a ameaça. Dog Day Afternoon converte um assalto em performance midiática e política. One Flew Over the Cuckoo’s Nest coloca a autoridade institucional no banco dos réus, num país recém-desperto para a ideia de que seus líderes mentiam sistematicamente.

O olhar retrospectivo é onde o filme se torna mais potente. Ao revisitar 1975, o documentário não está apenas celebrando clássicos, mas lendo o presente à luz do passado. A politização do cotidiano, a centralidade da mídia, a transformação do conflito em espetáculo e a desconfiança estrutural nas instituições estão ali, em estado embrionário. A diferença é que, naquele momento, Hollywood ainda conseguia metabolizar essas tensões em narrativas complexas, ambíguas e adultas.

Entender quem está por trás da câmera ajuda a explicar esse equilíbrio. O documentário é dirigido por Morgan Neville, um dos nomes mais sólidos do documentário americano contemporâneo quando o assunto é cultura como espelho social. Neville não é um historiador acadêmico do cinema nem um ensaísta puro; seu interesse está nos momentos de virada, quando sistemas começam a ranger. Em trabalhos anteriores, ele já mostrou habilidade para usar figuras, épocas ou movimentos aparentemente “seguros” como porta de entrada para discussões mais amplas sobre poder, indústria e sensibilidade coletiva.

Isso se reflete diretamente aqui. Neville não tenta provar, de forma definitiva, que 1975 foi “o melhor ano da história”. O ano funciona como personagem, como ponto de ebulição. Seu cinema é narrativo, acessível, mas nunca raso: a crítica está embutida, não sublinhada. Ele confia que o espectador chega pela provocação do título e fica pela densidade das conexões propostas.

Há ainda uma ironia silenciosa que o filme sugere com inteligência. 1975 marca tanto o auge dessa liberdade criativa quanto o início de sua corrosão. O sucesso industrial que nasce ali reorganiza Hollywood e prepara o terreno para um cinema cada vez mais guiado por números, menos tolerante ao risco autoral. O mesmo ano que consagra a ousadia começa, paradoxalmente, a limitar seu espaço.

Por isso, o documentário funciona melhor quando entendido não como ranking histórico, mas como ensaio sobre ciclos. Ele parte do princípio de que o cinema reage ao mundo — e que, em momentos de convulsão política e social, a arte tende a se tornar mais incômoda, mais política, mais reveladora. Nesse sentido, 1975 não é “o melhor ano da história”, mas é um espelho perturbador. Um momento em que Hollywood decidiu olhar para o país sem maquiagem — algo que, meio século depois, seguimos tentando fazer.

Vale muito ser visto. Não pelo exagero do título, mas pela clareza com que conecta cinema, política e presente.


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