50 anos de Um Dia de Cão: o verdadeiro assalto que virou espetáculo no cinema

Há filmes que envelhecem como documento. E há filmes que envelhecem como presságio. Um Dia de Cão (1975) pertence à segunda categoria: quanto mais o tempo passa, mais ele parece ter sido feito “para agora”, para a era em que todo acontecimento vira transmissão, todo conflito vira disputa de versão, e todo mundo — polícia, imprensa, multidão, até os reféns — é empurrado para dentro do mesmo teatro involuntário.

Cinquenta anos depois, a força do filme não está apenas no nervo dramático, na montagem afiada ou no realismo quase táctil da direção de Sidney Lumet. Está no modo como ele captura uma virada cultural. O assalto é o ponto de partida. O que o filme examina é a transformação do crime em evento público, a confusão moral da plateia, e a intimidade exposta no calor de um “dia de cão”, quando a cidade parece colar na pele e a vida não tem trilha sonora para organizar o caos.

A história real: quando a vida já parecia cinema e a imprensa entendeu isso na hora

O que vemos na tela nasce de um fato: em 22 de agosto de 1972, John Wojtowicz e Salvatore Naturile tentaram assaltar uma agência do Chase Manhattan no Brooklyn. O plano já começa errado, desanda rápido e vira um longo sequestro com negociação, multidão na rua, televisão presente e um final brutal no aeroporto. É o tipo de caso que, mesmo sem filme, já existe como narrativa pronta, com reviravoltas, figuras laterais memoráveis, e um protagonista cujo desespero é ao mesmo tempo tosco e comovente.

A matéria da Life que registrou aquilo, “The Boys in the Bank”, não só descreveu o evento como identificou algo crucial: havia ali uma história de performance. Havia o assaltante que, acuado, precisa falar, e, falando, começa a conduzir a multidão. Havia o público que, diante do impasse, escolhe torcer como se estivesse num jogo. Havia a negociação que deixa de ser só negociação e vira linguagem: gestos, slogans, momentos que “pegam”. A vida real, naquele dia, já estava ensaiando o tipo de espetáculo que o nosso século transformou em rotina.

Como o filme nasceu: direitos, roteiro e a decisão de contar tudo “de dentro” do assalto

Martin Elfand percebe o potencial da matéria, leva a Martin Bregman, e o projeto começa a se organizar dentro de um modelo muito típico do cinema americano dos anos 1970: pegar um fato real recente (ainda quente, ainda discutido), negociar direitos, e construir uma dramatização que não seja “reconstituição ilustrada”, mas interpretação.

Frank Pierson escreve o roteiro com uma escolha que define o filme: centralizar a história em torno de Wojtowicz — no cinema, Sonny Wortzik — e não transformar o caso num thriller policial clássico. O centro não é “como capturar”, é “o que essa situação faz com as pessoas”. O roteiro nasce de pesquisa, de depoimentos, de gravações, e da dificuldade de Pierson em “definir” Sonny, porque cada testemunha descrevia um homem diferente. O que une essas versões, no fim, é a mesma sensação: Sonny promete demais, improvisa demais, tenta controlar o incontrolável. Ele faz do improviso uma arma e essa arma vira também o que o destrói.

Como Pacino entrou: o papel que exigia vulnerabilidade, risco e uma coragem rara para a época

Existe uma mitologia justa em torno de Al Pacino nesse filme porque Dia de Cão é, acima de tudo, uma obra sobre alguém falando para sobreviver. E Pacino, aqui, está numa espécie de auge nervoso: ele não atua “para ser admirado”; ele atua como quem tenta respirar.

O caminho até isso, porém, não foi linear. Pacino aceitou, recuou, reconsiderou, voltou; um vaivém típico de quem sabia que estava entrando num lugar emocionalmente perigoso. Era um personagem excessivo, vulnerável, e atravessado por um tema que, em 1975, ainda era tratado como tabu ou piada por boa parte do mainstream: a dimensão queer do caso, a relação com Leon (baseado em Elizabeth Eden), e o fato de o assalto ter sido associado à tentativa de financiar uma cirurgia de afirmação de gênero.

Bregman insistiu porque entendia que Pacino tinha o que o papel precisava: sensibilidade. Não “carisma de bandido”, não “heroísmo”, mas uma qualidade mais incômoda e rara: a capacidade de ser errático sem virar caricatura, e de ser desesperado sem pedir desculpas por existir. Lumet, por sua vez, protegia o filme do sensacionalismo: o foco não seria o choque moral, e sim o drama humano, o “grito” por trás do evento.

E aí entra o detalhe que diz muito sobre a autenticidade do elenco: Pacino puxa para perto atores com quem tinha história, gente de teatro, de off-Broadway, gente que sabia operar nuance sem depender de maquiagem de estrela. John Cazale, por exemplo, é uma escolha perfeita para Sal porque não tenta “competir”: ele é silêncio tenso, é ameaça contida, é uma presença quase fantasmática. O filme precisa disso para não virar monólogo de Sonny.

Filmagens: o realismo como estratégia e como estética (e por que o filme parece notícia)

Lumet filma entre setembro e novembro de 1974 e faz algo que parece simples, mas é profundamente calculado: cria a sensação de que estamos assistindo a um acontecimento acontecendo.

A abertura, com Nova York vista como uma cidade viva, banal e calorenta, funciona como respiração antes do colapso. A ausência de trilha musical (com exceções pontuais “de rádio”) é uma decisão de linguagem: música tende a guiar emoção. Lumet não queria guiar. Queria que a cena respirasse como realidade.

O “banco” é construído dentro de um espaço que permitia paredes móveis, câmeras em posições improváveis e a possibilidade de ver a rua de dentro. Resultado: o interior nunca parece isolado. A rua invade. A rua pressiona. E, do lado de fora, Lumet transforma figurantes e pedestres num organismo coletivo. A multidão cresce, reage, improvisa, vira personagem. A polícia também não é “instituição abstrata”: tem rosto, cansaço, nervo, ego, burocracia.

Há uma inteligência física na direção: câmeras em movimento, longas lentes, energia de telejornal, close-ups que parecem capturar o pensamento no instante em que ele se forma. Lumet queria “newsreel”, queria a sensação de que a câmera está disputando espaço, lutando com o caos.

E há, também, uma engenharia para vender o calor do verão mesmo filmando no outono: luz fluorescente, “suor” calculado (Lumet misturando água e glicerina), truques para impedir que o frio apareça (gente com gelo na boca para equilibrar temperatura e evitar o bafo visível). Tudo isso não é curiosidade de bastidor: é a explicação de por que o filme parece pegajoso, claustrofóbico, quente. O calor não é cenário; é dramaturgia.

O grito “Attica!” e o instante em que o filme explica o mundo em uma palavra

Existe um momento em Dia de Cão que ultrapassa o enredo e vira comentário social puro: quando Sonny sai, negocia com a polícia, percebe a multidão, e transforma seu desespero em retórica. “Attica! Attica!” não é apenas uma fala memorável; é um atalho emocional. A palavra aciona a memória recente do massacre na prisão de Attica e, com ela, um repertório de desconfiança contra a violência do Estado. De repente, o assaltante não é visto só como criminoso: ele vira símbolo, vira porta-voz improvisado, vira “o cara que desafia a polícia”.

É um momento tão potente porque revela um mecanismo que hoje reconhecemos com facilidade: o público quer uma narrativa. E, quando alguém oferece, ele compra, mesmo que seja perigoso, mesmo que seja contraditório. Sonny entende isso intuitivamente. E o filme, ao registrar esse entendimento, antecipa o nosso presente: o tempo em que slogans substituem discussão, em que multidões se inflamam por palavras-chave, e em que o espetáculo frequentemente engole a complexidade.

Leon, as ligações telefônicas e o coração secreto do filme

Se “Attica” é o pico público, as ligações são o pico íntimo.

Lumet grava as conversas em sequência, empurrando Pacino até a exaustão emocional. E é ali que o filme muda de natureza: ele deixa de ser “filme de assalto” para ser, sem vergonha nenhuma, drama de relação. O que está em jogo não é apenas fuga, dinheiro, sobrevivência. É amor, fratura, culpa, dependência, tentativa de reparação.

O acerto delicado está no modo como Leon é tratado. O filme não é perfeito (nem poderia ser, sendo de 1975), mas há uma preocupação explícita em não reduzir o personagem a clichê. O humor da conversa não é riso “sobre” um personagem queer, é riso sobre a tragédia banal de um casal que se entende mal, que se ama mal, que se perdeu. Isso, por si só, é revolucionário para o cinema comercial da época.

E é nesse ponto que Dia de Cão ganha profundidade: Sonny não assalta para “virar bandido famoso”. Ele assalta porque está quebrado, sem saída, tentando comprar uma solução para algo que o mundo insiste em tratar como impossibilidade. O filme nunca pede que você aprove o crime. Mas ele exige que você enxergue o ser humano.

Cazale e o clássico improvisado: “Wyoming” como piada triste perfeita

Outra prova de como o filme respira vida é o tipo de detalhe que entra por improviso e fica como assinatura. Quando Sonny pergunta para onde Sal quer fugir, a resposta “Wyoming” é tão absurda e tão precisa que vira um retrato: a fantasia de escapar para um lugar distante o suficiente para ser “fora do mundo”, como se bastasse mudar o nome do mapa para o desespero parar de existir. É engraçado, mas é engraçado do jeito que certas coisas são engraçadas quando a situação está perdida: um riso que já vem com luto embutido.

O final no aeroporto: quando o Estado decide encerrar o espetáculo

A condução para o JFK e o desfecho são a lembrança dura de que, por trás da negociação teatral, existe uma máquina que, em algum momento, escolhe encerrar a história com força. A execução de Sal é seca, abrupta, sem catarse. E o corte de Lumet evita o sensacionalismo: ele abre o quadro, mostra a cena como panorama, e nos deixa com o vazio. A tragédia, aqui, não é estilizada. É administrativa.

Crítica, bilheteria, prêmios: o sucesso de um filme que não é “fácil”

O filme estreia em setembro de 1975 e vira sucesso de crítica e público. A recepção celebra exatamente aquilo que poderia dar errado: o tom que mistura tensão e humor, a energia desordenada que nunca vira bagunça, e a coragem de sustentar um protagonista moralmente ambíguo com empatia.

As premiações confirmam o impacto: Oscar de Roteiro Original para Pierson, indicações importantes, reconhecimento do trabalho de edição, e, décadas depois, a consagração institucional que sela o status de clássico: em 2009, Dia de Cão entra no National Film Registry como obra “cultural, histórica ou esteticamente significativa”.

Mas o verdadeiro termômetro do legado não é o prêmio. É a sobrevivência do filme como referência. “Attica” virou citação cultural. A estrutura de “evento cercado por mídia e público” virou modelo para inúmeras narrativas depois. E, sobretudo, o retrato de Sonny como homem em colapso — ao mesmo tempo irritante, carismático, cruel, infantil, desesperado e humano — continua sendo uma aula de atuação e de direção.

O que 50 anos revelam: por que o filme fica mais atual com o tempo

Talvez a pergunta não seja “por que Dia de Cão continua relevante?”, mas “por que ele parece cada vez mais moderno?”. E a resposta está no que ele entende sobre nós.

Ele entende que multidão quer espetáculo. Que polícia também performa. Que imprensa amplia, distorce, canoniza. Que o protagonista, acuado, aprende a jogar com isso, e que, ao jogar, se transforma. Ele entende que a verdade não é uma coisa sólida: é um objeto disputado, negociado, gritado na rua.

E entende, com uma lucidez devastadora, que por trás do grande evento existe um conjunto de vidas pequenas, precarizadas, íntimas, tentando sobreviver. O assalto vira “o assunto do dia”. Para Sonny, é a tentativa final de consertar o que ele não sabe consertar. Para Leon, é a vida exposta como controvérsia pública. Para os reféns, é trauma. Para a cidade, é entretenimento. Para o Estado, é um problema a ser encerrado.

Cinquenta anos depois, a gente reconhece esse mecanismo com desconforto. Porque ele não desapareceu. Ele só mudou de plataforma.


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