Faltam poucos meses para a estreia de Odisseia, novo filme de Christopher Nolan, e a expectativa em torno do projeto já ultrapassou o terreno do hype comum. Não se trata apenas de curiosidade por mais um título de um diretor consagrado. O que está em jogo aqui é algo mais amplo: a sensação de que este filme concentra, em si, discussões sobre o que o cinema de grande escala ainda pode — ou ousa — ser.

Desde o anúncio, ficou claro que Nolan não escolheu Odisseia por impulso ou oportunismo cultural. A obra atribuída a Homero não é apenas um clássico respeitável da literatura ocidental; é um texto profundamente inquietante, ambíguo e moderno em suas perguntas. E isso ajuda a explicar por que ela dialoga de forma tão orgânica com o cinema de Nolan, talvez mais do que qualquer outra epopeia antiga.
A Odisseia é, antes de tudo, uma narrativa sobre o tempo. Não o tempo heroico das grandes vitórias, mas o tempo da espera, da errância, da sobrevivência prolongada. Odisseu passa vinte anos longe de casa: dez lutando em Troia, dez tentando voltar. Quando o poema começa, ele já está ausente há tanto tempo que sua identidade virou mito e o mito, como sabemos, raramente corresponde ao homem real. Nolan sempre se interessou por esse descompasso entre experiência vivida e narrativa construída. Seus filmes não lidam com o tempo como pano de fundo, mas como força dramática ativa, capaz de deformar memória, identidade e moralidade.
Não é difícil enxergar por que a Odisseia o atrai agora. O poema começa no meio da história, se constrói em fragmentos, relatos e lembranças, avança e recua. O passado nunca está resolvido, o presente é instável e o futuro permanece incerto. É uma estrutura que ecoa diretamente a lógica narrativa de Memento, A Origem, Interestelar ou Dunkirk. Nolan não parece interessado em “atualizar” Homero, mas em escutar o que esse texto ainda diz quando lido a partir de nossas próprias ansiedades contemporâneas.
A jornada de Odisseu, frequentemente reduzida a uma sucessão de monstros e aventuras, é na verdade uma sequência de testes morais e psicológicos. O ciclope Polifemo não é apenas um inimigo físico; ele expõe a arrogância e o orgulho do herói. As sereias representam a tentação do esquecimento, do abandono da luta. Circe e Calipso oferecem atalhos — prazer, descanso, até a imortalidade — que exigem, em troca, a renúncia à própria identidade. O momento em que Odisseu recusa viver para sempre ao lado de Calipso é um dos mais reveladores do poema: ele escolhe a finitude, o retorno imperfeito, a dor do tempo, porque isso é o que o mantém humano.

Esse ponto tem sido repetidamente citado por quem acompanha o projeto: Nolan não estaria interessado em um épico ornamental, mas em uma leitura profundamente humana da Odisseia. Um filme menos preocupado em ilustrar o mito e mais interessado em investigar o custo psicológico da sobrevivência, especialmente após a guerra.
O elenco anunciado reforça essa leitura. A escolha de Matt Damon como Odisseu aponta para um herói distante da idealização clássica. Damon traz consigo um tipo de presença muito específica: homens práticos, marcados, sobreviventes, personagens que carregam consequências visíveis. É fácil imaginar um Odisseu cansado, estratégico, ferido, alguém cuja inteligência salva, mas cujo orgulho cobra seu preço.
Ao redor dele, o filme reúne um grupo de atores que sugere intensidade emocional e ambiguidade, mais do que grandiloquência. Anne Hathaway, colaboradora frequente de Nolan, permanece envolta em mistério quanto ao papel, mas sua filmografia com o diretor sempre esteve ligada a personagens atravessados por dilemas morais e afetivos. Tom Holland surge como possível encarnação de Telêmaco, o filho que cresce à sombra de um pai ausente, figura essencial para que a Odisseia não seja apenas sobre retorno, mas também sobre amadurecimento forçado. Zendaya e Robert Pattinson completam um elenco que aponta para conflito interno, tensão psicológica e leitura contemporânea dos arquétipos.

Os papéis específicos seguem em sigilo, como de costume em projetos de Nolan, e isso só intensifica as projeções. Mas o consenso que começa a se formar é claro: este não será um épico clássico no sentido tradicional. Tudo indica um épico de interioridade, em que monstros e deuses coexistem com silêncio, desgaste emocional e trauma acumulado.
Há ainda o contexto industrial, talvez o mais revelador. Em um momento em que Hollywood aposta majoritariamente em franquias serializadas, universos expansíveis e narrativas pensadas para continuidade infinita, Nolan investe em um filme auto contido, baseado em literatura clássica, com orçamento de grande estúdio e ambição autoral. Isso transforma Odisseia em algo mais do que um lançamento aguardado: ela se torna quase um gesto político dentro da indústria, uma reafirmação de que o cinema pode ser grande, denso e não necessariamente “amigável”.
O que tem sido dito nos bastidores reforça essa leitura. Odisseia reafirma a crença de Nolan no cinema como experiência física e coletiva — algo que exige atenção, entrega e desconforto. Assim como em Dunkirk ou Oppenheimer, não se espera um filme que explique tudo ou conduza o espectador pela mão. A aposta é em imagens, som e montagem como ferramentas narrativas, não como ornamento.

Talvez por isso o projeto dialogue tão diretamente com o nosso tempo. Vivemos uma era marcada por guerras prolongadas, deslocamentos, esperas intermináveis e identidades fraturadas. A Odisseia, escrita há quase três mil anos, fala exatamente disso. O retorno de Odisseu não é uma celebração simples; é um confronto com o que foi perdido, com o que mudou, com o que não pode ser restaurado. Penélope, por sua vez, não é apenas a esposa fiel: é uma estrategista da espera, alguém que também sobreviveu ao tempo e à ausência.
No fim, talvez a expectativa em torno de Odisseia não esteja ligada apenas à curiosidade sobre como Nolan filmará monstros, deuses ou batalhas. O que realmente mobiliza é a sensação de que este filme tenta responder, com as ferramentas do cinema, a uma pergunta antiga e ainda urgente: quem somos depois de atravessar tudo?
Se o cinema ainda pode ser um espaço para esse tipo de reflexão — adulta, densa, desconfortável —, Odisseia parece determinada a lembrar que sim.
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