A possível venda da Warner para a Netflix tem vários pontos sensíveis que preocupam o mercado. Entre eles, talvez o mais delicado não seja catálogo, escala global ou poder algorítmico, mas algo menos mensurável: a disposição para bancar projetos ousados, autorais e profundamente desconfortáveis. Uma característica que sempre definiu a HBO e que foi sendo progressivamente reduzida desde que o estúdio passou ao guarda-chuva mais conservador da Discovery. Raised by Wolves é um dos exemplos mais claros — e mais radicais — dessa ousadia que hoje parece distante.

Não era uma série fácil de vender, de explicar ou de defender em reuniões de performance. Ainda assim, foi lançada. Com orçamento alto, ambição estética declarada e uma proposta que rejeitava qualquer concessão ao espectador médio. Só isso já diz muito sobre o que a HBO foi capaz de sustentar em outro momento da indústria.
Raised by Wolves nunca pediu licença para existir. E talvez esse tenha sido, desde o início, seu maior problema, e seu maior trunfo.
Não era uma série fácil. Não era elegante no sentido clássico. Não fazia questão de ser compreendida de imediato, nem de agradar. Pelo contrário: frequentemente parecia testar a paciência do espectador. Uma serpente híbrida que voa? Uma protagonista assassinada ao ser transformada em árvore? Um planeta que parece reencenar, em ciclos, o colapso de civilizações inteiras? Honestamente, nada disso é simples de levar a sério fora do contexto interno da própria série. E, ainda assim, Raised by Wolves era tão radicalmente fora da caixa que chega a surpreender — três anos depois — que ela tenha sido feita, financiada e exibida por um grande estúdio.
Criada por Aaron Guzikowski e produzida por Ridley Scott, a série nasceu como uma aposta clara no sci-fi filosófico, desconfortável e simbólico. A premissa inicial parecia relativamente “controlável”: dois androides, Mother e Father, são enviados a Kepler-22b para criar crianças humanas após a destruição da Terra por guerras religiosas. Mas rapidamente ficava claro que aquilo era apenas o ponto de partida para algo muito mais inquietante. O conflito entre ateus e mitraicos não servia como pano de fundo moral simples; era desmontado episódio a episódio, até que fé e razão se revelassem igualmente capazes de produzir violência, fanatismo e ruína.

A trama avançava como um ensaio visual sobre repetição histórica. Kepler-22b não surgia como promessa de recomeço, mas como um arquivo vivo de civilizações que já haviam fracassado antes. Nada ali era virgem. Tudo parecia carregado de memória, culpa e ciclos inevitáveis. A tecnologia não salvava. A religião não redimia. A maternidade — biológica ou artificial — era apresentada como força criadora e destrutiva ao mesmo tempo.
As reações foram tão extremas quanto a própria série. Parte do público abandonou a narrativa à medida que ela se tornava mais abstrata, simbólica e, para muitos, simplesmente absurda. A serpente voadora se tornou um divisor de águas cultural: para alguns, o momento em que Raised by Wolves finalmente se libertava de qualquer expectativa convencional; para outros, o ponto exato em que a série “perdia o controle”. A crítica, por sua vez, oscilou entre fascínio e perplexidade, reconhecendo a ambição estética, mas frequentemente apontando a dificuldade de engajamento emocional e narrativo.
Em números, Raised by Wolves nunca foi um fenômeno de massa. Teve uma estreia forte dentro do ecossistema da HBO Max, impulsionada pelo nome de Ridley Scott e pela curiosidade em torno do projeto, mas não se sustentou como um título de crescimento exponencial. Seu público era fiel, porém limitado. Era uma série cara, densa, pouco recomendável para consumo casual e quase impossível de viralizar. Tudo aquilo que, poucos anos depois, se tornaria argumento suficiente para o cancelamento de qualquer produção.

O fim veio em 2022, não por um colapso isolado de audiência, mas como parte da grande reestruturação da Warner após a fusão com a Discovery. Nesse novo modelo, projetos passaram a ser avaliados menos por identidade e mais por eficiência. Menos por risco criativo e mais por previsibilidade de retorno. Raised by Wolves era, em essência, o oposto disso. Complexa demais para virar franquia, estranha demais para agradar algoritmos, cara demais para justificar insistência.
Segundo Guzikowski, o plano original previa cinco temporadas. A segunda funcionaria como a ruptura: o momento em que a série abandonava qualquer ilusão de linearidade, explicação ou redenção clássica. O caminho apontava para revelações ainda mais perturbadoras sobre a origem do planeta, a natureza da entidade conhecida como Sol e o papel central dos androides no ciclo de destruição e reconstrução da humanidade. A transformação literal de personagens em criaturas, símbolos ou até árvores não era provocação gratuita. Era linguagem. Era a série afirmando, sem sutileza, que a humanidade não evolui, apenas se reorganiza em novas formas de fracasso.
Hoje, três anos depois, Raised by Wolves faz falta justamente porque quase nada ocupa esse espaço. Em um ecossistema dominado por séries pensadas para circulação global imediata, com conflitos claros, personagens facilmente identificáveis e arcos calculados para retenção, ela soa como um erro de sistema. Um erro fascinante, imperfeito, desconcertante, e, por isso mesmo, precioso.
Talvez nunca fosse durar muito. Talvez jamais oferecesse um final “satisfatório”. Mas sua existência provava algo essencial: que a HBO, em determinado momento, ainda acreditava que a televisão de grande escala podia ser estranha, filosófica e profundamente incômoda. Se a Warner realmente caminhar para um futuro cada vez mais integrado a lógicas como a da Netflix, o temor não é perder séries. É perder a coragem de bancá-las.
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