Fechar o ano com uma produção do balé O Quebra-Nozes é uma tradição da dança clássica ao redor do mundo, e uma que, há séculos, marca tanto o fim de um ciclo quanto o começo de outro para gerações de bailarinos. Quase todo profissional da dança teve seu primeiro contato com a obra, seja na plateia, seja no palco: trata-se de um verdadeiro rito de passagem, daqueles que permanecem mágicos mesmo quando se repetem.
Pensar em quantas versões já foram — ou ainda são — montadas do balé é tarefa impossível. Desde sua estreia, em 1892, O Quebra-Nozes se transformou em uma febre mundial que atravessa mais de 130 anos. Ainda assim, a versão atual do Ballet do Theatro Municipal do Rio de Janeiro tem tudo para se consolidar como tradição própria. Ela é relativamente recente, e substitui uma montagem anterior muito querida, assinada por Dalal Achcar, que por décadas foi a versão “oficial” da companhia e que já pedia, honestamente, uma reciclagem.

Digo isso porque, embora o Bolshoi ainda dance a coreografia assinada por Grigorovich nos anos 1960 e o New York City Ballet mantenha a versão criada por Balanchine em 1954, a maioria das companhias opta por reinventar detalhes da narrativa para dialogar com novos públicos. Paradoxalmente, essas duas versões citadas desafiam o tempo, mas, para artistas que repetem ano após ano o ritual natalino, é compreensível — e até desejável — buscar novos desafios. Nem todos funcionam, claro.
No caso da companhia carioca, Hélio Bejani e George Teixeira fizeram ajustes pontuais na trama e na coreografia justamente para valorizar o excelente trabalho que vêm desenvolvendo com o corpo de baile masculino. Isso já havia ficado evidente em O Lago dos Cisnes — um balé essencialmente feminino, mas cujos atos 1 e 3 permitiram um equilíbrio maior — além de O Corsário e Frida. Em O Quebra-Nozes, onde há espaço natural para solos e momentos de destaque, esse investimento aparece ainda mais claramente.

O mérito dessa iniciativa está no fato de não ocorrer em detrimento do elenco feminino, mas em perfeita sintonia com ele. As mulheres seguem espetaculares, renovando o quadro de estrelas da companhia com grandes bailarinas. Até pouco tempo, porém, os homens enfrentavam maior dificuldade para formar um conjunto realmente homogêneo: havia talentos individuais, mas faltava grupo. Ver a qualidade técnica e o entrosamento dessa nova geração é simplesmente empolgante.
Mais do que isso, o Theatro Municipal do Rio de Janeiro vem transformando O Quebra-Nozes em um verdadeiro evento da cidade, um presente de Natal. A temporada começou no início de dezembro e segue até o dia 28, permitindo diferentes elencos ao longo das semanas, além de contar com uma lindíssima projeção que completa o clima mágico das festas.
Assisti à última apresentação antes do Natal, no dia 23, com Manuela Roçado como a Fada Açucarada e Rodrigo Hermesmeyer como o Cavaleiro. Ambos empolgaram a plateia, que respondeu calorosamente à montagem, aos cenários e aos figurinos deslumbrantes.

Desde 2024, a versão do BTMRJ também ajustou a narrativa para incluir o órfão Klaus. Ele é sobrinho de Drosselmeyer, um misterioso fabricante de relógios e brinquedos que criou uma armadilha responsável por exterminar metade dos ratos do reino. Em vingança, o Rei dos Ratos sequestra o sobrinho de Drosselmeyer e o enfeitiça, fazendo com que o tio não mais o reconheça — abandonando-o em um orfanato para meninos. Nas noites de Natal, o garoto se transforma em um boneco Quebra-Nozes. A única forma de quebrar o feitiço é o boneco enfrentar e derrotar o Rei dos Ratos. É aqui que Clara Stahlbaum, afilhada de Drosselmeyer, se torna decisiva ao ajudar o Quebra-Nozes na batalha. A plateia, repleta de crianças, reage com entusiasmo a cada cena, porque a inocência de O Quebra-Nozes segue absolutamente irresistível.
A precisão técnica de Manuela e Rodrigo merece destaque especial. Como minha própria sobrinha brincou comigo: “eles têm só dez minutos; mas são os dez minutos mais exaustivos, física e tecnicamente, de todo o balé”. A precisão, aliada à delicadeza da dupla, é literalmente mágica. Também rever Marcela Borges e Alyson Trindade — aqui como Rainha e Rei da Neve — depois de vê-los em destaque na temporada de O Corsário, foi outro ponto alto da noite.


Após o Natal, o Ballet do Theatro Municipal ainda retorna aos palcos para algumas récitas finais, encerrando o ano no dia 28. Os ingressos estão esgotados, mas não há motivo para preocupação: O Quebra-Nozes já está garantido no calendário de 2026. O público sempre pede por mais. E assim, pouco a pouco, o Rio de Janeiro vai retomando — e reafirmando — sua tradição. Feliz Natal!
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