A morte de Brigitte Bardot, aos 91 anos, encerra uma das trajetórias mais transformadoras — e mais difíceis de acomodar — da história do cinema do século 20. A confirmação veio neste domingo (28), por meio da Fundação Brigitte Bardot, criada por ela em Paris. Reclusa há décadas, afastada voluntariamente do espetáculo, Bardot já não era presença pública. Mas continuava sendo símbolo de ruptura estética, de liberdade corporal e de um conjunto de contradições que atravessaram sua vida até o fim.
Brigitte Bardot não foi apenas uma estrela. Mudou a maneira do olhar.

O nascimento de um novo erotismo
Quando surgiu nos anos 1950, o cinema ainda tratava o sexo como insinuação controlada. Bardot apareceu como um corpo que não pedia desculpas, não se justificava e não parecia existir para ser moralmente corrigido. Sua imagem — cabelos propositalmente desalinhados, olhos fortemente marcados, boca sempre em estado de provocação — transformou-se rapidamente em linguagem cultural.
O ponto de inflexão foi E Deus Criou a Mulher, dirigido por Roger Vadim, então seu marido. Lançado nos Estados Unidos em 1957, o filme foi desprezado por muitos críticos, mas causou impacto imediato no público. Bardot tinha 23 anos quando se tornou uma estrela internacional. Bosley Crowther, no The New York Times, chamou-a de “um fenômeno que você precisa ver para acreditar”, mesmo considerando o filme frágil.
Não era a obra que importava: era ela.
A personagem de Bardot não apenas desejava: assumia o desejo como motor narrativo. Simone de Beauvoir enxergou ali uma tentativa — ainda que falha — de confrontar a tirania do olhar patriarcal da câmera. Um “fracasso nobre”, escreveu. O cinema não estava pronto. O mundo tampouco.
Ícone absoluto e prisioneira da própria imagem
Ao contrário de outras sex symbols da época, Bardot não parecia moldada por um estúdio. Sua sexualidade era direta, desajeitada, inquieta. Isso a tornou irresistível e insuportável para a lógica da indústria. Quase tudo nela passou a ser copiado: o cabelo bagunçado, o delineador pesado, as roupas justas, as saias rodadas, as pernas sempre expostas ao sol.
Ela não era apenas uma atriz popular. Era um modelo de comportamento.
Mas o custo foi alto. Bardot nunca romantizou a própria fama. Tentou suicídio pela primeira vez ainda jovem, diante da rejeição dos pais ao cinema e ao relacionamento com Vadim. Ao longo dos anos 1960, viveu sob perseguição constante da imprensa, invasões de privacidade, relações abusivas e um esgotamento emocional profundo.
Em 1960, no dia em que completou 26 anos, tentou suicídio novamente.
A liberdade que projetava na tela não se traduzia em tranquilidade fora dela.

A sapatilha vermelha: quando estilo vira linguagem cultural
Há um detalhe aparentemente pequeno que ajuda a entender por que Brigitte Bardot extrapolou o cinema e virou linguagem: a sapatilha.
Foi Bardot quem transformou a sapatilha da Repetto — originalmente criada para bailarinas — em objeto de desejo urbano. A história começa antes do cinema: treinada em balé clássico, Bardot conhecia bem a marca fundada por Rose Repetto, mãe do coreógrafo Roland Petit. Mas o gesto decisivo veio quando ela passou a usar, fora dos palcos e das aulas, a sapatilha vermelha criada especialmente para ela.
Simples, confortável, baixa, quase infantil e radicalmente anti-glamour para os padrões da época.
Num mundo em que o feminino ainda era associado a salto alto, rigidez e performance constante, Bardot apareceu usando sapatilhas como quem faz uma declaração silenciosa: o corpo não precisa sofrer para ser desejável. A escolha dialogava com tudo o que ela representava: liberdade de movimento, recusa do artifício excessivo, sensualidade sem encenação.
A sapatilha vermelha da Repetto virou símbolo de um novo tipo de elegância: espontânea, acessível, corporal. Assim como seus cabelos desalinhados e o delineador marcado, o sapato deixou de ser acessório para se tornar código cultural. Bardot ajudou a tirar o balé do palco e colocá-lo na rua, antecipando uma ideia de moda que hoje chamamos de “effortless”, mas que, nos anos 1950 e 60, era profundamente subversiva.


Décadas depois, a Repetto relançaria o modelo repetidas vezes, sempre ligado diretamente ao nome de Bardot, não como nostalgia vazia, mas como reconhecimento de que aquele objeto carrega uma virada histórica: o momento em que conforto, liberdade e feminilidade deixaram de ser opostos.
Assim como Búzios, assim como o abandono precoce do cinema, assim como a recusa ao star system, a sapatilha vermelha é parte do mesmo gesto maior: Bardot não se vestia para agradar — se vestia para existir.
Bardot no Brasil: o refúgio em Búzios
Em 1964, em fuga do assédio europeu, Bardot veio ao Brasil acompanhando o namorado brasileiro Bob Zagury. O destino foi uma então discreta vila de pescadores no litoral do Rio de Janeiro: Armação dos Búzios.
A passagem de Bardot por Búzios não foi uma nota de rodapé, foi fundacional. Pela primeira vez em anos, ela conseguiu circular com algum grau de anonimato: descalça, sem maquiagem, conversando com moradores, longe do aparato do star system. Ali, Bardot não era mito.
O impacto foi imediato e permanente. A presença da atriz colocou Búzios no mapa internacional e transformou para sempre o destino. Décadas depois, a Orla Bardot eternizaria essa passagem não apenas como homenagem turística, mas como símbolo de um momento em que a mulher mais fotografada do mundo escolheu o Brasil para desaparecer um pouco do olhar.
Esse episódio ajuda a compreender sua trajetória melhor do que muitos filmes: Bardot não buscava adoração, apenas silêncio.

O adeus ao cinema no auge
Em 1973, aos 39 anos, Brigitte Bardot fez algo quase impensável: abandonou o cinema. Não foi decadência, nem falta de ofertas. Foi recusa consciente. Sua última aparição relevante veio naquele mesmo ano. A decisão foi definitiva.
“Sabia que minha carreira era baseada inteiramente no meu físico”, diria mais tarde. “Decidi sair como sempre saí dos homens: primeiro.”
Poucas estrelas tiveram coragem — ou lucidez — para romper assim.
A segunda vida: os animais no centro
Antes mesmo de deixar o cinema, Bardot já se envolvia com a causa animal. Mas foi apenas em 1986 que transformou isso em missão absoluta, criando a Fondation Brigitte Bardot. Para garantir sua sobrevivência financeira, leiloou joias e bens pessoais.
A partir daí, dedicou-se integralmente à defesa dos animais: combateu o uso de peles, denunciou a caça de lobos, a tourada, a vivissecção, o consumo de carne de cavalo. Enfrentou governos, tradições culturais e interesses econômicos com uma militância incansável e muitas vezes solitária.
“Dei minha beleza e minha juventude aos homens”, disse certa vez. “Agora dou minha sabedoria e experiência aos animais.”
O legado tensionado pela política
Nas últimas décadas, porém, a imagem pública de Bardot sofreu um deslocamento profundo. Declarações contra imigrantes, muçulmanos e a comunidade LGBTQIA+ lhe renderam cinco condenações por incitação ao ódio racial. Em livros e entrevistas, adotou um discurso alarmista e excludente, aproximando-se da extrema direita francesa e apoiando publicamente Marine Le Pen.
Também se posicionou contra o movimento #MeToo, chamando denúncias de abuso de “hipócritas” e “ridículas”. Para muitos, foi uma ruptura dolorosa com o símbolo de liberdade que Bardot representara. Para outros, a confirmação de que ela sempre foi inclassificável e desconfortável.

Um legado sem absolvição fácil
Brigitte Bardot deixa mais de 50 filmes, uma influência estética incalculável e um legado que resiste a leituras fáceis. Ela mudou para sempre a maneira como o cinema filmou o desejo feminino. Também mostrou como o mito pode se tornar prisão, e como a recusa pode ser a forma mais radical de liberdade, mas terminou seus dias associada ao conservadorismo extremado.
“Comigo, a vida sempre foi feita do melhor e do pior”, disse uma vez. “Tudo foi excessivo.”
Talvez seja essa a definição mais precisa de sua trajetória.
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