Cecil B. DeMille foi um dos arquitetos fundadores de Hollywood. Diretor, produtor e showman, DeMille foi responsável por consolidar o cinema americano como espetáculo de massas, num momento em que a linguagem ainda estava sendo inventada e a própria indústria se organizava. Seus épicos históricos e bíblicos — como Os Dez Mandamentos e Sansão e Dalila, entre outros — ajudaram a estabelecer a ideia de cinema como evento: ritual coletivo, experiência maior do que a vida.
Desde 1952, seu nome batiza um prêmio do Golden Globes que reconhece artistas cujo legado tem impacto na história do cinema. Afinal, DeMille não foi importante apenas pelos filmes que dirigiu. Ele ajudou a moldar práticas de produção, distribuição e promoção que definiram o funcionamento do sistema clássico de estúdios. Seu nome, portanto, não simboliza apenas grandiosidade estética, mas impacto estrutural. É por isso que o prêmio que o homenageia nunca foi pensado para celebrar um trabalho específico, e sim trajetórias inteiras, marcadas por influência duradoura e autoridade construída ao longo do tempo. Em 2026, a homenageada é Helen Mirren.

Ela passa a integrar uma categoria de prestígio. Ao longo de mais de sete décadas de existência, o Cecil B. DeMille Award foi concedido a nomes que ajudaram a definir o imaginário cinematográfico, entre eles Walt Disney, Audrey Hepburn, Sidney Poitier, Elizabeth Taylor, Robert Redford, Meryl Streep, Tom Hanks e Oprah Winfrey. Não é um prêmio de encerramento, nem de nostalgia. É um gesto de inscrição em uma linhagem.
E poucas carreiras contemporâneas dialogam tão diretamente com essa ideia quanto a de Helen Mirren.
Helen Mirren: uma carreira construída sem atalhos
A trajetória de Helen Mirren nunca foi guiada por conveniência nem por linearidade. Nascida Helen Lydia Mironoff, filha de pai russo e mãe inglesa, ela chegou à atuação pelo teatro e nunca deixou de pertencer a ele. Seu ponto de inflexão inicial veio ainda muito jovem, aos 19 anos, quando interpretou Cleópatra em Antony and Cleopatra pelo National Youth Theatre. Era uma escolha simbólica: uma atriz que começava a carreira encarnando poder, ambição e complexidade feminina sem suavizações.
A passagem pela Royal Shakespeare Company consolidou essa base. Shakespeare não foi trampolim, mas fundação. Mirren construiu ali uma relação com o texto, o corpo e a autoridade cênica que atravessaria toda a sua carreira, inclusive quando migrou para o cinema. Seus primeiros papéis em filmes como Age of Consent e, mais tarde, Excalibur, revelavam já uma recusa clara à docilidade: suas personagens eram sensuais, ambíguas, frequentemente desconfortáveis.

Nos anos 1980, Mirren começou a ocupar um espaço raro: o de atriz capaz de circular entre cinema autoral e produções mais convencionais sem perder densidade. Em The Cook, the Thief, His Wife & Her Lover, de Peter Greenaway, entregou uma das performances mais radicais de sua carreira: um arco que ia da submissão à vingança com violência quase operística. Pouco depois, Cal lhe rendeu o prêmio de Melhor Atriz em Cannes, confirmando algo que Hollywood ainda relutava em reconhecer: aquela não era uma atriz “de nicho”, mas de alcance amplo.
A virada definitiva na televisão veio com Prime Suspect. A detetive Jane Tennison não apenas transformou Mirren em nome doméstico no Reino Unido; ela redefiniu o espaço da mulher madura na TV policial. Tennison era brilhante, falha, alcoólica, autoritária e vulnerável, tudo aquilo que protagonistas masculinos sempre puderam ser sem explicação. Mirren sustentou a personagem por mais de uma década, encerrando a série em 2006 com um Emmy e com a sensação de ter deslocado o eixo do gênero.
Se Prime Suspect consolidou sua força televisiva, The Queen a inscreveu definitivamente no cânone do cinema. Seu retrato de Elizabeth II evitava caricatura e reverência: era uma rainha humana, atravessada por silêncio, contenção e fratura emocional. O Oscar, o Golden Globe e o SAG que vieram com o papel reconheceram não apenas uma grande atuação, mas uma maturidade artística rara, ainda mais notável por ter chegado em uma fase da vida em que atrizes costumam ser empurradas para a margem.

O mais revelador, no entanto, é o que Mirren fez depois disso. Ela se recusou a cristalizar uma imagem “régia”. Alternou projetos autorais (Gosford Park, Trumbo, Hitchcock), televisão de prestígio (Elizabeth I, Catherine the Great), filmes populares (RED, Fast & Furious) e até papéis que flertam com a autoparódia, sempre com o mesmo rigor. Nunca tratou o prestígio como proteção; tratou-o como ferramenta de liberdade.
Essa mesma lógica atravessa sua presença pública. Nomeada Dame do Império Britânico em 2003, Mirren jamais se comportou como instituição. Tornou-se rosto da L’Oréal aos 69 anos, desfilou em passarelas, apresentou programas populares e falou abertamente sobre envelhecimento, poder e gênero sem a ansiedade de parecer “adequada”. Seu ativismo nunca foi performático; foi consequência de uma carreira que sempre recusou silenciamento.
Hoje, com mais de cinco décadas de trabalho entre teatro, cinema e televisão, Mirren reúne Oscar, Emmy, Tony, BAFTA e SAG, faltando apenas um Grammy para o EGOT. Mas essa contabilidade diz pouco perto do essencial: Helen Mirren construiu uma carreira em que autoridade não vem da repetição, mas da disposição constante ao risco.
É esse percurso — amplo, indisciplinado, resistente à acomodação — que o Cecil B. DeMille Award reconhece. Não uma carreira “exemplar” no sentido comportado do termo, mas uma trajetória que ajudou a definir o que significa envelhecer com relevância artística, sem se transformar em monumento.



O DeMille Award como reconhecimento de autoridade
Ao homenagear Helen Mirren, o Golden Globes reafirma algo que o cinema às vezes hesita em dizer em voz alta: longevidade artística não é apenas sobreviver ao tempo, mas dialogar com ele sem se dobrar. Mirren nunca se comportou como monumento. Nunca pediu reverência. Nunca se afastou do risco.
A homenagem será entregue em 8 de janeiro de 2026, durante o especial Golden Eve, exibido pela CBS e pelo Paramount+, poucos dias antes da cerimônia principal do Golden Globes. A criação desse evento separado, dedicado exclusivamente aos prêmios de legado, é reveladora: Hollywood sente a necessidade de pausar o ruído para olhar para trás com mais atenção.

Quando a homenagem dispensa defesa
Há homenagens que pedem justificativa. Que exigem argumento, convencimento, explicação. A de Helen Mirren não pertence a esse grupo. Ela não é celebrada por nostalgia, nem por “serviços prestados”. É celebrada porque sua presença continua sendo referência ativa, não arquivo.
O Cecil B. DeMille Award reconhece exatamente isso: artistas que não apenas fizeram história, mas continuam dialogando com ela, sem concessões fáceis, sem caricatura do próprio legado.
Helen Mirren não precisa ser resgatada. Ela nunca saiu de cena. E é justamente por isso que essa homenagem faz tanto sentido.
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