Em quase 100 anos de Oscar, é certo que em mais de uma oportunidade houve impasse, ou, simplesmente, injustiça. Nos 98 anos da festa (completados em 2026), só houve dois empates nas categorias de ator e atriz: em 1932, com Frederic March e Wallace Beery (quando as regras ainda eram confusas), e em 1969, com Barbra Streisand e Katharine Hepburn. Mas, para qualquer apaixonado pela história de Hollywood, nada se compara até hoje à disputa de Melhor Atriz de 1950.
O ano é frequentemente citado como a disputa mais forte da história da categoria. Gloria Swanson entregou uma das performances mais icônicas do cinema, Bette Davis estava no auge da maturidade dramática, Anne Baxter era pura ambição em estado bruto, mas foi Judy Holliday que venceu com uma comédia inteligentíssima. Até hoje há debates sobre “erro” ou “ousadia” da Academia. Vou dar minha dica pessoal: por mim, teria sido, minimamente, outro empate.

Quando Hollywood não sabia o que escolher
Embora o “melhor ano de Hollywood” tenha sido 1939, e o de “virada política” seja 1975, os anos 1950 são um espelho desconfortável do presente (2025), mais do que a gente costuma admitir.
O cinema dos anos 1950 estava, ao mesmo tempo, no auge do poder simbólico e sob ameaça estrutural. Era uma indústria gigantesca, confiante, tecnicamente sofisticada — mas já sentia que o mundo ao redor estava mudando rápido demais. E sim: a televisão incomodava muito.
Embora o cinema ainda fosse a principal forma de entretenimento coletivo, a TV já era vista como ameaça concreta. Em 1949, menos de 10% das casas nos Estados Unidos tinham um aparelho; em apenas cinco anos, esse número saltou para mais de 60%. Quando chegou 1960, a televisão estava praticamente em toda sala de estar, criando uma alternativa poderosa para quem queria se divertir no conforto do sofá. Por isso, o Oscar de 1950 pode ser visto como o “último” sob domínio quase total das grandes telas. E que ano.
Os filmes em disputa eram A Malvada, Crepúsculo dos Deuses, Tarde Demais, A Batalha de Bastogne e Almas em Chamas. Também muito presentes em outras categorias estavam Nascida Ontem, Cativeiro, O Terceiro Homem, O Invencível e Almas em Fúria. Como ser justo diante de tantos clássicos?

Mais de 75 anos depois, não há consenso. Foi um ano em que a Academia foi obrigada a fazer algo raro: comparar atuações que não pertenciam à mesma ideia de cinema, nem à mesma noção de mulher, nem ao mesmo futuro possível para Hollywood.
Por isso, ao contrário de tantos debates retrospectivos, 1950 não envelheceu mal. Envelheceu inquieto.
A “pior” categoria dentre todas foi justamente a de Melhor Atriz. As cinco indicadas não disputavam o mesmo prêmio. Disputavam o significado do prêmio.
As veteranas e as novatas
Bette Davis chegou a 1950 com A Malvada como quem retorna ao centro depois de ter sido empurrada para a margem. Hollywood já havia tentado descartá-la, rotulá-la como difícil, velha, inviável. Margo Channing nasce exatamente dessa consciência. Não há ingenuidade nessa atuação. Davis não interpretou o medo de envelhecer; interpretou a inteligência de quem sabe que o envelhecimento, em Hollywood, é um projeto de apagamento cuidadosamente executado. Cada pausa, cada frase afiada, cada gesto levemente exagerado carrega o peso de alguém que entende as regras do jogo melhor do que aqueles que fingem controlá-lo. E vale sempre lembrar: Margo tinha apenas 40 anos.
Há uma curiosidade pouco comentada: Davis recusou qualquer tentativa de suavizar Margo. Insistiu que a personagem fosse espirituosa, cruel quando necessário e profundamente lúcida. Não queria redenção fácil. Essa recusa ajuda a explicar por que sua atuação se tornou tão citada — e, paradoxalmente, tão difícil de premiar. A Academia ainda não sabia muito bem o que fazer com mulheres que não pediam empatia.

No mesmo filme, Anne Baxter construiu Eve Harrington como um projeto de ambição silenciosa. Diferente das vilãs clássicas, Eve não entra em cena como ameaça; ela se oferece como espelho. Baxter trabalhou com contenção estratégica: a voz baixa demais, o olhar calculado, o sorriso que dura um segundo a mais do que deveria. Sua atuação envelheceu de forma curiosa, porque hoje reconhecemos em Eve um tipo de personagem feminino que o cinema contemporâneo abraçou: a mulher que manipula sistemas, não pessoas individualmente. Em 1950, porém, Baxter pagou um preço invisível — dividir votos com Davis e interpretar uma ambição feminina que ainda precisava ser punida narrativamente.
Pois é: quem “tirou” o Oscar (que muitos argumentam merecido) de Bette Davis foi sua própria colega de elenco. Não por acaso, até hoje os estúdios se desdobram para evitar, a qualquer custo, que dois atores do mesmo filme concorram na mesma categoria. Se Baxter, por ser a “ascendente”, tivesse sido indicada como coadjuvante, a história teria sido diferente? Nunca saberemos.
Enquanto isso, Gloria Swanson fez algo radicalmente diferente em Crepúsculo dos Deuses. Norma Desmond não é apenas uma personagem em declínio; é a encarnação do próprio star system olhando para si mesmo com horror e nostalgia. Swanson aceitou o exagero como linguagem, não como falha. Cada gesto grande demais é deliberado; cada olhar carregado de teatralidade é uma lembrança de um cinema que já não existia. Há relatos de que muitos votantes se sentiram desconfortáveis com o filme justamente por isso: ele os colocava dentro da narrativa, não como espectadores, mas como cúmplices de um sistema que descarta seus ídolos.
É difícil superestimar o impacto disso em 1950. Premiar Swanson significaria validar um olhar crítico sobre Hollywood em pleno auge de sua autoconfiança. A atuação é hoje considerada canônica, mas à época parecia olhar para trás quando a indústria queria, desesperadamente, olhar para frente. Não por acaso, a disputa do Oscar de 2025 entre Demi Moore e Mikey Madison foi comparada a 1950: A Substância era muito preciso na crítica à obsessão pela juventude; uma novata em uma comédia romântica parecia uma escolha mais segura.


No meio disso tudo, há quem esqueça Eleanor Parker, talvez a presença mais injustamente ignorada da disputa. Em Cativeiro, Parker atravessa o sistema prisional feminino sem glamour, sem promessa de redenção moral. Sua transformação ao longo do filme não é edificante; é corrosiva. Parker entendeu que a lógica do cárcere não quebrava apenas corpos, mas identidades. É um trabalho físico, progressivo, quase documental para os padrões da época. Muitos críticos contemporâneos reconheceram sua força, mas o Oscar ainda não estava preparado para premiar um realismo feminino tão desprovido de romantização.
E então há Judy Holliday, frequentemente reduzida, de forma injusta, à “opção leve”. Nascida Ontem é uma comédia, sim, mas Holliday constrói Billie Dawn como um processo. Sua personagem aprende. Aprende em público, aprende errando, aprende sendo subestimada. O que torna essa atuação extraordinária não é o humor em si, mas a precisão com que a inteligência emerge sem quebrar o ritmo cômico. Nada ali é improvisado no sentido frouxo do termo; é engenharia de timing, entonação e pausa.
Há uma curiosidade reveladora: Holliday vinha do teatro e havia criado Billie no palco, ajustando a personagem a partir da reação do público. Ao chegar ao cinema, refinou o trabalho, tornando a transformação menos explícita e mais orgânica. O resultado é uma atuação que parece simples, e justamente por isso engana.
A vitória de Holliday costuma ser chamada de surpresa. Isso diz mais sobre nosso preconceito histórico com a comédia do que sobre a decisão da Academia. Entre cinco propostas de cinema feminino, a escolha por Holliday oferecia algo raro: transformação sem tragédia, inteligência sem punição, crescimento sem anulação. Era uma resposta elegante a um impasse que não tinha solução perfeita.


O que faz de 1950 um ano singular não é a impossibilidade de apontar uma vencedora “correta”. É o fato de que todas as alternativas continuam corretas, dependendo da pergunta que se faz. Queremos premiar o enfrentamento do envelhecimento? Davis. A crítica ao star system? Swanson. A ambição feminina moderna? Baxter. O realismo social radical? Parker. A inteligência cômica como forma de emancipação? Holliday.
Poucos Oscars permitem esse tipo de leitura sem colapsar sob o peso da retrospectiva. 1950 resiste porque não se fecha. Permanece como o retrato raro de um momento em que Hollywood, talvez sem perceber, colocou em disputa não apenas atrizes, mas o futuro da atuação feminina no cinema.
É por isso que ele ainda importa. Não como resposta, mas como pergunta aberta.
E, por mim, perdemos a chance de fazer história e eternizar as lendárias Swanson e Davis — cada uma — com um Oscar.
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