Passado o Natal — quando a poeira de flocos de neve baixa e a música de Piotr Ilyich Tchaikovsky finalmente silencia e dá para falar com mais franqueza sobre O Quebra-Nozes. E aqui vai uma provocação, assumidamente opinativa: há versões coreograficamente feias, mesmo quando tecnicamente absurdas. Difíceis, sim. Belas, nem sempre.
Sendo direta (e aceitando o rótulo de sexista como recorte crítico, não como ofensa): na dança clássica, os homens ainda dominam a história das grandes criações. E não é coincidência que os Quebra-Nozes que atravessaram o tempo com mais elegância sejam aqueles pensados para o corpo feminino, como faziam Marius Petipa e George Balanchine: onde a dificuldade existe para servir à música, ao desenho do movimento, à ilusão.
Um toque de modernidade é bem-vindo. Mas há Quebra-Nozes de Rudolf Nureyev, Alexei Ratmansky e Roland Petit que deslocam o eixo do espetáculo para o virtuosismo masculino. E aí, com todo respeito aos fãs desses gênios, não funciona para as mulheres. O melhor (ou pior) exemplo? O Quebra-Nozes de cada um deles.

Rudolf Nureyev (1973): excesso como estética
Criado em 1973 para o Paris Opera Ballet, o Quebra-Nozes de Rudolf Nureyev permanece no repertório até hoje — o que atesta seu peso histórico. Nureyev concebeu a obra para si mesmo, ampliando radicalmente o protagonismo masculino: Drosselmeyer se confunde com o Príncipe, a psicologia ocupa o centro, a infância vira memória.
A recepção sempre foi dividida. Intelectualmente estimulante, coreograficamente opressiva. O vocabulário é elaborado demais: braços intrincados, saltos excessivos, elevações arriscadas, passagens que exigem força e controle quase atléticos — mas que não desenham beleza. Só virtuoses conseguem dançar aquilo. O público percebe o esforço. E ballet, por mais técnico que seja, não é (apenas) exibicionismo. Menos teria sido mais.
ABT: quando mudar tudo apaga o que funcionava
No American Ballet Theatre, vale lembrar o percurso antes da ruptura. De 1976 a 1993, a versão “oficial” foi a de Mikhail Baryshnikov — filmada em 1977 e, para mim, uma das mais românticas e quase perfeitas.
Ali, Clara é uma adolescente e se apaixona pelo Príncipe. Não gosto que ela permaneça o tempo todo de camisola, nem que o grande pas de deux vire, na prática, um pas de trois (Clara dança com o Quebra-Nozes e com Drosselmeyer). Ainda assim, o prólogo e a batalha são, sem exagero, os mais perfeitos de todos: claros, teatrais, musicalíssimos, com fantasia sem excesso e perigo real sem ruído.
Entre 1993 e 2010, o ABT passou a dançar a versão de Kevin McKenzie, revista em 2003. Foi um passo deliberado para se aproximar de Petipa: mais ordem, mais classicismo, menos psicologização. Não era genial, mas funcionava. Havia respeito à música, ao tempo da frase, ao desenho feminino.
Quando Alexei Ratmansky estreia sua versão em 2010, a decisão é mudar tudo radicalmente. A proposta — historicamente informada, intelectualmente coerente — reorganiza o enredo, separa com nitidez Clara-criança e Clara-mulher, transforma o Príncipe em projeção simbólica. No papel, é brilhante. No palco, é medonha.
O pas de deux soa apressado, nervoso, sem suspensão. A coreografia passa por cima de uma das melodias mais lindas de Tchaikovsky como se estivesse com pressa de provar conceito. O resultado é frio, ilustrativo, acadêmico — e completamente desprovido de encantamento.
Roland Petit: ousadia que não vira poesia
Aqui sou menos dura por afeto declarado. Sou fã de carteirinha de Roland Petit. Tudo o que ele criou foi moderno, provocador, irreverente. Mas o Quebra-Nozes não acompanha o melhor do seu gênio.
A montagem é fora da caixa demais, a ponto de parecer outra obra. Há ecos de Coppélia no primeiro ato, especialmente no uso dos bonecos, deslocando o eixo simbólico da história. O pas de deux chega a ser assustador de difícil: acrobático, quebrado, instável — e, novamente, não se traduz como bonito. A dificuldade existe, mas não se converte em poesia.
Ou seja…
Há Quebra-Nozes que nos impressionam pelo que exigem do corpo. E há aqueles que permanecem porque embelezam o movimento feminino, respeitam a música e entendem que técnica só vale quando se dissolve em ilusão.
Depois do Natal, sem culpa e sem laços, dá para dizer: dificuldade não basta. Ballet é linha, tempo, respiração, e, acima de tudo, beleza em movimento.
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