Parte do sucesso de séries como Succession, House of The Dragon e Game of Thrones transita nas relações familiares tóxicas e a briga pelo Poder. Irmãos contra irmãos, pais abusivos, companheiros também abusivos e muita política que, em muitos casos, resultam em vida ou morte. Sem surpresa, essas três premiadas séries da HBO geram engajamento e muita, muita discussão sobre personagens e motivações. Em comum compartilham outro problema: a visão masculina sobre as mulheres. Em especial, uma mulher no Poder. Em quase todos os casos, esbarram em clichês e simplificações, que contribuem para o que o movimento feminista ainda encontra como grande barreira, a de inverter a narrativa do patriarcado.
Em Succession, Shiv Roy (Sarah Snook) cometeu a “traição final”, derrubando seu irmão Kendall Roy (Jeremy Strong) e o tirando da sucessão. Aqui a frase é para ressaltar o nome da série, mas o que Shiv fez foi tirar a Coroa de Kendall, ou, não deixá-lo sentar no Trono, para deixar ainda mais claro o que une as três séries mais comentadas da última década.

Shiv Roy já está no hall de personagens icônicas da TV. Dúbia, subestimada, manipuladora, mas sensível e uma eficaz jogadora, ela trouxe em vários momentos como as mulheres são mal-tratadas em tempos atuais. Se os argumentos de que House of The Dragon e Game of Thrones não refletem a realidade por serem fantasias passadas em tempos medievais, Succession é mais do que atual. No entanto, as situações seguem as mesmas, como já tinha comparado quando vi em Shiv uma reprodução familiar semelhante a dos Lannisters, porém pode ser aplicada à dos Starks e Targaryens também.
Ao longo das quatro temporadas de Succession, Shiv passou por várias situações comuns para mulheres: considerada menor, considerada fazendo um trabalho “fácil” (até Lukas Mattson desfaz de sua habilidade política), é interrompida por homens, é ‘esquecida’, é chamada de “instável” ou “passional” quando está em uma discussão, de “falar demais”, de ser sedutora e até de ser um escorpião. Por ser ambiciosa, imediatamente é tratada como uma potencial má mãe e se vê jogando com esse conceito para ser aceita. Mesmo quando “ganha”, perde. É tão trágica quanto Kendall e complexa como Sansa Stark.
Em Game of Thrones, Sansa é a personagem que entende o que pode ambicionar. Ela quer se casar com o Príncipe Joffrey, ter filhos e ser Rainha. Ela não quer saber de batalhas ou política e por esse despreparo, quando chega perto de seu objetivo, praticamente ajuda a destruir sua própria família.
Refém de uma cultura agressiva e implacável, ela sobrevive à outras traições e ameaças, até que desiste de ser “boazinha” e passa a “jogar o jogo dos tronos”. Nas temporadas finais, Sansa (Sophie Turner) se ressente que é Jon Snow (Kit Harignton) o escolhido para ser Rei do Norte em seu lugar, mesmo sendo ela a verdadeira herdeira dos Starks (ele é bastardo) e a estrategista da vitória contra os Boltons. Mais tarde, é Sansa que não aceita nem Cersei Lannister (Lena Headey) ou Daenerys Targaryen (Emilia Clarke) como Rainhas, revelando para quem precisa que Jon na verdade é Aegon Targaryen, o verdadeiro herdeiro do Trono de Ferro. No final, Sansa termina Rainha do Norte, Jon é exilado e Cersei e Daenerys, mortas. Shiv com certeza acompanhou GOT!


Apenas para seguir nos paralelos, lembrei que Cersei foi tratada por seu pai, Tywin (Charles Dance), como objeto para conseguir alianças políticas, mas, por mais da metade de Game of Thrones, foi chamada de incompetente e burra não apenas pelo pai, marido e filho, mas pelo irmão, Tyrion (Peter Dinklage). Cersei errou? Sim, várias vezes, assim como todos os homens. Porém, como mulher, era ignorada. No final das contas foi mais estratégica que Tyrion, mais efetiva para resolver a crise econômica do Reino do que qualquer monarca antes dela e efetivamente anulou Daenerys Targaryen, que tinha três dragões, e quase venceu a batalha. Como Daenerys precisou destruir King’s Landing para tirar Cersei do trono, podemos até dizer que Cersei foi a vencedora do embate.
Shiv tinha a opção de manter a Waystar Royco na família, mas sob o comando de Kendall. Poderia vender e ter o comando efetivo de Lukas Mattsson (Alexander Skarsgard), com seu marido, Tom Wambsgans (Matthew Macfadyen), como CEO. Ela implode as esperanças dos irmãos e dá a cartada final, deixando em aberto se conseguirá superar o machismo e ser a dona de tudo mais à frente ou se vai se submeter ao patriarcado e ser apenas uma coadjuvante. O papel que, aliás, tanto os irmãos como Lukas e Tom queriam dela. Shiv foi rainha má como Cersei ou suicida como Daenerys ou estratégica como Sansa?


De toxicidade na dinâmica familiar os Targaryens têm vários livros e várias gerações como exemplo, tirando dos Roys qualquer sonho de domínio no tema de família disfuncional. Em Game of Thrones, Daenerys sofreu quase toda primeira temporada os abusos do irmão, Viserys, que por ser homem e mais velho era o sucessor teórico para o Trono de Ferro, até que o pai dos dois tivesse sido assassinado. Quando ele gritava que “queria sua coroa” ecoava os gritos de Kendall para Shiv de ser o primogênito, algo que só confirmava a ela toda insegurança de coroá-lo CEO.
Daenerys aprova que seu marido, Khal Drogo, mate Viserys e com isso e ela herda o Direito presumido pela Coroa. Aos poucos essa ambição também afeta sua trajetória, mas, é quando é confrontada por um Jon Snow sendo seu sobrinho e herdeiro ANTES dela, pelo simples fato de ser homem, perde a razão. Okay, é simplificando, mas ainda está no tema. Sua opção pela violência dividiu fãs que não aceitaram a destruição de seu caráter.
Ainda no mesmo universo, House of The Dragon coloca as leis do patriarcado na ordem sucessória no coração da trama da série. Rhaenyra (Emma D’Arcy), única filha do primeiro casamento do Rei Viserys I (Paddy Considine) é oficializada como sua sucessora, algo que a segunda mulher dele, Alicent Hightower (Olivia Cooke) não concorda, incitada pelo pai ambicioso, Otto (Rhys Ifans), e terminamos a primeira parte da história com o filho de Alicent com Viserys, Aegon (Tom Glynn-Carney) como Rei de Westeros, apenas porque ele é homem. Ele e Rhaenyra vão para uma batalha tão sangrenta pelo Poder que quase vão dizimar a família.


Até então parece tudo certo, né? Apenas uma história de política e guerras, mas a batalha feminina sempre está no lado derrotado. Cersei é ambiciosa e inescrupulosa, Sansa é falsa e manipuladora, Daenerys é louca sanguinária, Alicent é rancorosa e manipulada, Rhaenyra é descuidada e insegura e Shiv, bom Shiv é vingativa e insensível. Facilmente esbarraremos nessas simplificações, sua autora inclusive. As tramas conduzem para essa armadilha que só reforça a negatividade de uma figura feminina capaz de ser líder e reconhecida por suas habilidades para conduzir uma empresa ou um reino. Nenhuma personagem ainda foi vencedora sem sacrificar ou sua feminilidade, ou seu amor, sua família ou alma. As heroínas como Mulher-Maravilha viram seus parceiros serem mortos “pelo bem maior” onde apenas ela acaba pagando o preço da solidão.
Eu tenho raiva de Shiv porque, por tortuosamente fui levada a questioná-la mais ao escolher um dos dois lados que a traiu, selecionando o que aparentemente traz mais vantagem para ela, mas que destrói seu irmão. E seria ótimo até que fosse dela essa decisão, mas que não necessariamente, por razões de storytelling dramático, ela tivesse que parecer uma mulher insegura que muda de idéia na última hora, chorando e sofrendo. Trouxe humanidade à ela, sem dúvida. Faz sentido justamente porque a dinâmica dos Roys é essa? Claro. Mas reforça a figura da vitória feminina na dubiedade, no impulso, no ciúme e na falsidade.
O final aberto de todos, mostrando um Tom em uma posição de poder (fictício e temporário, até Lukas mudar de idéia) ao qual ela aceita com restrições, levaram à muitas teorias de que ela já estava fechada com ele (não concordo) ou que se submeteu a ser como foi sua mãe (também discordo) ou, que está apenas armando sua volta mais à frente. Um amigo avaliou que ela escolheu deixar a administração arcaica e tóxica de seu pai para trás, optando por algo novo do mundo tecnológico, apesar de ter sido traída por ambos. Não vejo assim, afinal Lukas assedia moralmente e sexualmente sua equipe, além de mentir sobre números e estar quebrado. A escolha de Shiv acabou sendo ainda mais sombria e incerta do que ter um Kendall no poder. De novo, Shiv sempre foi colocada como falsa, manipuladora, hipócrita, rancorosa e ambiciosa tornando muito difícil torcer por ela. O que não me impede de lamentar de mais uma vez ver a chance perfeita de ter uma mulher virando o jogo com escrúpulos e inteligência, apenas porque é um homem tentando retratar a alma feminina.
Mulher não é tão difícil de decifrar se pararem de colocá-la como algo menor. Se a construção de Shiv, Sansa, Cersei e Daenerys não fosse ressaltando muito mais as falhas comuns aos homens, eu gostaria de ter visto Shiv “rainha”. Mas foi mais uma Coroa perdida em clichês e erros do patriarcado. Será que ainda acertam um dia?

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