Em 1985, Miranda Richardson fez sua espetacular estreia no cinema, dirigida por Mike Newell, na biopic sobre Ruth Ellis, Dançando com um Estranho. Ruth tinha sido a última mulher britânica condenada à morte, trinta anos antes (em 1955), por ter atirado no amante, o piloto de corridas David Blakely (Ruppert Everett). Embora ela o tenha matado, o processo judicial foi (e é) controverso, criando um material que o cinema ou a TV não conseguem resistir. Tanto que Lucy Boynton está trabalhando em uma nova série para ITV, ainda em desenvolvimento. Isso mesmo, pelo andar da carruagem, antes de virar Marianne Faithfull (o projeto segue em pré-produção), ela será outra mulher britânica famosa. E por que a história de Ruth ainda fascina a midia?

Ruth Ellis foi julgada moralmente antes de responder por seu crime. Para sociedade patriarcal, ela foi uma oportunista que vivia na noite e que matou o rico e famoso amante por despeito, depois que descobriu que ele não se casaria com ela. Simplista e questionável, muitos argumentam que Ruth veio de uma vida de abusos psicológicos e físicos impostos por homens, desde seu pai, o marido e até o amante. Em feminicídios o passado traumático do assassino provavelmente teria sido aceito para amenizar. apena, mas, com Ruth, em minutos foi condenada à forca unanimamente. O debate e a reação que sua execução causaram contribuíram para a eventual abolição permanente da pena de morte por homicídio no país, mas apenas em 1969.
Ruth não é uma figura de trajetória simpática e cresceu em meio a abusos. Nascida em Gales, em 1926, foi a quarta de cinco filhos. Quando tinha apenas dois anos, um de seus irmãos morreu em um acidente, alterando permanentemente a personalidade de seu pai, que passou a ser abusivo com as filhas, inclusive sexualmente. Ele teria violentado a irmã mais velha dela, Muriel, que engravidou com apenas 14 anos. O filho foi criado como irmão delas e quando Ruth entrou para adolescência, passou a ter que se esquivar do pai também, determinada a escapar dele. Quando a família se mudou para Londres, ela decidiu que ia “fazer algo de sua vida”.
A essa altura, em tempos de Guerra, especialmente para mulheres, era ainda mais difícil ter trabalho e influenciada por uma amiga, teria ‘descoberto’ a animada noite londrina, onde conheceu e se apaixonou pelo soldado franco-canadense Clare Andrea McCallum. Ruth engravidou e ele a pediu em casamento, mas como foi enviado para a França, deixou a ‘noiva’ cuidando de tudo até sua volta. Aos 17 anos, teve um menino, mas nunca mais viu o pai da criança. Ele já era casado e pai de outros três, nunca foi honesto com ela. Ruth teria ficado traumatizada pela traição e humilhação. Muriel e sua mãe cuidaram da criança e ela passou a buscar alternativas para sustentar a todos.

Como muitas mulheres naquele tempo, a alternativa era a prostituição e ela passou a trabalhar para Morris Conley, um golpista e cafetão, que tinha uma rede de mulheres à seu serviço. Assim conheceu seu primeiro marido, George Ellis, um dentista e ex diretor do Crystal Palace Football Club, 17 anos mais velho que ela e lidando com alcoolismo. Logo passou a sofrer abusos físicos de George, que tinha ciúmes do passado dela, e que duvidou da paternidade da filha dois dois. Em poucos anos, se separaram. Ruth voltou atrabalhar com Conley, provavelmente porque tinha uma vida um pouco mais luxuosa, que a permitia sustentar aos dois filhos, sua mãe e irmã também. Nessa fase, platinou o cabelo (copiando Marilyn Monroe) e acreditou que teria um futuro melhor. Infelizmente quase que imediatamente conheceu David Blakely, desviando de seus planos.
David vinha de origem melhor que Ruth. Filho de um médico, seu pai frequentemente batia em sua mãe e chegou a ser julgado pela morte de uma amante com um aborto que deu errado, mas foi absolvido do crime. Quando sua mãe se divorciou de seu pai, David ficou com ela e por isso quando ela se casou novamente com um rico empresário, manteve uma existência luxusosa. David era tido como “arrogante e impopular “, assim como conhecido por “ter um prazer positivo em ferir os outros”, além de apaixonado por automobilismo. Uma obsessão que Ruth pagava para manter, depois que passaram a viver juntos.
O relacionamento com David era tóxico e abusivo como os anteriores, mas Ruth era apaixonada por ele. Ele chegou a ficar noivo de outra mulher e ainda assim, ela o perdoava. Não que fosse fiel, ela tinha outro amante, Desmond Cussen, um ex-oficial da RAF que a ajudava financeiramente uma vez que as dívidas para sustentar David aumentavam. Ruth mandou o primeiro filho para um internato (pago por Desmond) e a filha que teve com George ellis, para adoção. Segundo teria dito mais tarde, fez tudo para conseguir manter David, até sacrificar seus filhos.
Talvez pelo exemplo que teve em casa ou porque na época violência doméstica não existia nem em conceito, Ruth passou a ser alvo de surras de David, algo que todos testemunhavam. O triângulo amoroso entre ela, David e Desmond era cada vez mais perigoso, com Morris Conley irritado que eles tiravam Ruth do circuito, reduzindo os lucros da casa. Demitida e sem nada, Ruth foi viver com Desmond, mas David seguia sendo sua obsessão.
Descartada por ele, na Páscoa de 1955 tomou uma decisão desesperada. Se despediu do filho e foi até a festa onde sabia que David estava, mas para qual não teria sido convidada. O esperou do lado de fora e quando ele saiu com um amigo para comprar cigarros em um pub, os dois não repararam que Ruth os seguia. Quando David percebeu, tentou correr, mas ela disparou duas vezes, insistindo atrás dele até que caísse no chão. Sem que ele pudesse reagir, ela deu mais três tiros. Ruth tentou se matar na hora, mas a arma não disparou. Testemunhas dizem que em nenhum momento alterou o comportamento, se mantendo fria e calma. Resignada até.

Nessa narrativa, não é jamais a intenção questionar a culpabilidade de Ruth Ellis, ela mesma queria morrer, não negou que quis e matou David Blakely, mas o desenho de quase merecimento da forca por conta de seu passado. O julgamento não levou mais do que 20 minutos. O promotor só fez uma única pergunta: “o que pretendia fazer?” ao qual respondeu sem pestanejar. “É óbvio que, quando atirei nele, pretendia matá-lo.” Nem havia o que questionar.
A execução aconteceu poucos meses depois e ela se recusou a pedir Perdão em vez de Morte. Ela só concordou em contar sua vesrão da história se não fosse usado para mudar a sentença. Ela revelou que foi Desmond que comprou a arma e a ensinou atirar. Também foi ele que a levou até a cena do crime. O Juiz alegou que nada alterava, ao contrário, só comprovava a premeditação do crime. A última carta de Ruth foipara os pais de David: “Sempre amei seu filho e morrerei ainda amando-o.”
A tragédia marcou os sobreviventes. O filho e a mãe de Ruth se mataram anos depois. É uma história marcada por violência, abandono e tristeza e que assombra os britânicos mesmo quase 70 anos depois. Será curioso ver o que mais poderão mudar. Certamente Lucy vai brilhar, como Miranda Richardson brilhou há quase 40 anos.
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