O efeito “Meghan Markle” na narrativa de The Buccaneers

Depois que todas as outras plataformas tiveram seus sucessos de séries de época “moderninhas”, a Apple TV Plus não poderia ficar de fora. A estréia de The Buccaneers confirma que há uma forte influência de Bridgerton, que, por sua vez, seguia a escola de Sofia Coppola e Marie Antoinette. Séries como The Serpent Queen e a recém falecida The Great confirmam que a fórmula para falar de História com uma geração mais nova passa forçosamente por anacronismos. Séries como The Gilded Age e The Crown se recusam a seguir essa estrada, mas são exceção hoje em dia.

Puristas (faço parte do time), aprecia quando o showrunner consegue se manter atual sem inverter a proposta original como atalho. O anacronismo de Sofia em Marie Antoinette estava na trilha sonora e um ocasional elemento (o tênis no meio das roupas de época). Como tudo que ela faz, delicado, sutil, inteligente e cool. Algo que A Rainha Serpente está seguindo. Porém a febre Bridgerton, como já mencionei, criou quase que que um subgênero que fez da versão atualizada de Persuasão transformasse a tímida e sofrida Anne Elliott em uma Elizabeth Bennet. Se o público não tiver a curiosidade de buscar a fonte original, é quase uma deturpação perigosa.

A estreia ansiada de The Buccaneers meio que confirmou os receios dos tradicionais: muita gritaria, muita “modernidade” esvaziando o drama real que estava sendo relatado ali. Não que faça da série um produto ruim, ao contrário, está lindamente filmado e atuado, mas não é o que Edith Wharton escreveu ou tentou relatar. Teremos uma comparação mais justa se The Gilded Age seguir, como começou, nos espelhos das pessoas reais que inspiraram The Buccaneers, em especial Consuelo Vanderbilt que na série da HBO é a personagem de Taissa Farmiga, Gladys Russell. É uma história trágica que moças jovens fossem leiloadas para nobres falidos e ainda chamadas de “bucaneiras” (piratas “aprovados” pela Coroa).

O avanço do tempo e da autonomia feminina nos distanciam dos anos em que essa era a regra aceita pela sociedade. Consuelo foi forçada por sua mãe, Alva Vanderbilt, a se casar com um homem que não amava e abandonar quem amava porque não era um Duque. Dizem que ela chorava tanto e tão alto na cerimônia de casamento que a orquestra teve que tocar mais alto para abafar os soluços. Não há como modernizar esse sofrimento. Seu casamento foi infeliz desde o primeiro segundo até o dia que conseguiu se divorciar. Uma história tão pública e trágica que gerou livros e filmes. Mas falemos da série.

The Buccaneers é o livro menos popular de uma escritora tão fascinante como Wharton. Assim como Henry James, ao contrário de Jane Austen, ela se recusava se distanciar da realidade e criar finais felizes. Ela e James, seu amigo, registraram com precisão os anos da “gaiola dourada”, mas ela faleceu antes de terminar o livro e portanto há correntes que reclamam de uma série de argumentos mal desenvolvidos no que seria sua última história, publicada em 1938, ou seja, há 85 anos. Na época, o New York Times já considerou o livro com traços da escritora mas que “os personagens parecem meros esboços” e “seu final dramático carece da vitalidade visualizada que teria recebido da caneta da Sra. Wharton”. Há 30 anos, em 1993, houve uma “versão completa” da história, assinada por Marion Mainwaring, que usou anotações da autora original. Quando a BBC colocou no ar uma minissérie estrelada por Carla Gugino e Mira Sorvino, puristas foram até o teto com reclamações. Nós brasileiros também poderíamos questionar que a brasileira da história, Conchita, tenha o apelido espanhol e não da nossa cultura. Detalhes? Talvez.

A versão de 2023, à luz do drama de Meghan Markle com a cultura monarquista ganha outra luz também. O elenco inclusivo já não é novidade, mas a angústia jovem e os conflitos culturais ganham volume. Mas a narrativa tenta ao máximo se manter ao texto original. Começamos com o casamento de Conchita Closson (Alisha Boe) com Lord Richard Marable (Josh Dylan). Ainda em Nova York, Nan conhece Guy Thwarte (Matthew Broome) com quem se entende imediatamente. Conchita, em sua autenticidade, já está grávida de Lord Richard, que quase desiste da união mas acaba seguindo em frente. No que ele mesmo antecipa ser um período de dureza para a esposa – se adaptar às rígidas regras da monarquia – ele convida as amigas da esposa para uma viagem à Inglaterra, onde possivelmente poderão encontrar maridos nobres para elas. As irmãs Nan St. George (Kristine Froseth) e Jinny St. George (Imogen Waterhouse) e Lizzy Elmsworth (Alissa Ibrag) e Mabel Elmsworth (Josie Totah), vão inicialmente acompanhadas de suas mães, animadas com a perspectiva, mas, viverão cada uma, as dores de casamentos arranjados e escolhas erradas.

A descoberta de um segredo de família abala a relação de Nan e Jinny, e, acompanhada de sua governanta, Srta. Testvalley (Simone Kirby), Nan conhece o taciturno Duque de Tintagel (Guy Remmers), que se apaixona por ela. Sem avançar no que vem por aí, embora dividida entre o que sente por Guy, omitindo segredo de sua origem bastarda e se jogando em uma relação que mal começou e já virou casamento, Nan é nossa heroína.

As liberdades com a história original exploram enredos apenas sugeridos no livro, incluindo um romance entre pessoas do mesmo sexo e um relacionamento abusivo, nada que pudesse ser explícito há 85 anos.

Kristine Froseth segurou com habilidade o protagonismo da série e o triângulo amoroso entre Theo, ela e Guy promete dividir torcidas. Mas é Alisha Boe que transforma sua Conchita em uma Meghan Markle atualizada, com o sofrimento do racismo e a dificuldade de se encaixar em uma sociedade sufocante como a monarquista. Toda tentativa de se ajustar é vã e quem acompanha o drama da Família Real não deve ter perdido todos os detalhes retratados nos três primeiros episódios da série. Aliás, saindo da série para o reality show que domina os noticiários há seis anos, desde que Meghan se envolveu com o Príncipe Harry, percebe-se que pouco mudou. Americanos são tratados como barulhentos e sem classe, mas na perspectiva deles são os ingleses que são esnobes e arrogantes. O sangue latino de Conchita no papel (na série não há referências brasileiras) também acrescenta a pitada de preconceito geral, incluindo o da autora.

Basicamente intolerância era uma das mensagens da trama original, alimentada por ganância, segredos e indiferença. Eu gostaria de ver a história mais próxima do original, mas com tudo que vemos hoje, reparamos o quanto ainda é atual. Assustador, não?

As viradas mais tristes ainda estão por vir, mas, em geral, é mais um acerto da plataforma que vem ocupando sem dificuldade um espaço competitivo de séries e filmes de qualidade. The Buccaneers pode ser apenas o início de um investimento em conteúdo de época. É, pelo menos, minha esperança!

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