Em 50 anos, Manon deixou de escandalizar e ainda encanta

O ballet Manon estreou em 1974, com as lendas Antoinette Sibley no papel título e Anthony Dowell como seu infeliz amante, Des Grieux. Criado por Kenneth McMillan, depois do enorme sucesso de sua versão de Romeu e Julieta, quase 10 anos antes, é hoje um dos papéis mais cobiçados por todas bailarinas, ao lado dos clássicos Odette-Odile, Aurora e Julieta. Nem sempre foi assim, claro! Afinal, há meio século, o balé ultra sexualizado ainda era escandaloso, mesmo que hoje seja apenas usual. Sem surpresa, na temporada de fevereiro, o Royal Ballet terá uma nova temporada da obra, marcando os 50 anos da produção e os 101 anos do designer, Nicholas Georgiadis.

O ballet é uma adaptação do romance Manon Lescaut, de Abbé Prévost, que obviamente quando foi lançado em 1731 foi considerado “picante”. Manon é uma linda jovem sem um tostão, que quer ascensão social e é usada por seu irmão igualmente ambicioso, se vendendo para nobres ricos. No entanto, ela se apaixona pelo idealista e romântico Des Grieux, precisando escolher entre fortuna ou amor. Ela arrasta Des Grieux para um mundo perigoso de devassidão, mas, quando é condenada por prostituição e deportada para Nova Orleans, mesmo acompanhada pelo devotado, possessivo e obsessivo Des Grieux , tem um destino trágico.

Nada nessa história grita “ballet clássico”, mas assim seria o caso de Ivan, o Terrível, o ballet que eu considero a contrapartida masculina para Manon, curiosamente criado por Yuri Grigorovich no ano seguinte, 1975. Afinal, a Manon descrita por Prévost era o protótipo da “mulher fatal”, um termo machista que foi solidificado tanto na literatura, no cinema e outras Artes da cultura misógina que retrata uma mulher cruel que usa de sexo e sedução para que os homens a sigam até a morte. Sim, A Dama das Camélias, Carmen e outras tantas, punidas igualmente com a morte, mas cuja história basicamente é a narrativa de seu papel influenciando a queda de um homem. Isso mesmo, em vez de olharmos para uma jovem abusada, explorada e vendida na prostituição, Manon Lescault é sobre a tragédia de Des Grieux, que sacrifica sua herança e seus princípios pela paixão por uma mulher fútil.

Quando o mundo se alinha perfeitamente, os brilhantes estão no lugar certo e na hora certa. Em 1974, Kenneth MacMillan estava no auge criativo, e sua perspicácia aguçada sobre a psicologia humana estava perfeitamente casada com seu domínio na coreografia narrativa. Seus pas de deux nunca foram tão complexos, difíceis tecnicamente e absolutamente inseridos na narrativa da história. Com isso, criou um dos balés que passam o teste do tempo.

Como sempre, a musa de McMillan foi a incrível Lynn Seymour, mas não foi ela quem originou o papel nos palcos. Foi a musa ausente porque Lynn estava grávida e considerando se aposentar quando ele começou a trabalhar no balé. Por isso Manon foi criado para uma dupla que viveu também à sombra da fama de Margot Fonteyn e Rudolf Nureyev no Royal Ballet, os grandes Antoinette Sibley e Anthony Dowell. Antoinette, que era amiga de Lynn e a favorita de Frederic Ashton depois de Fonteyn, sempre ressaltou sua relação saudável com a musa de McMillan, deixando claro que não houve ciúmes entre elas. Se Lynn estivesse dançando, Manon seria dela. Como não estava, foi de Antoinette. “Ele deve ter visto algo em mim que queria. Manon era eu, este era o meu balé”, ela disse em uma entrevista. Infelizmente, o filme oficial da obra não tem a musa original. Por conta das dificuldades dos passos, Antoinette teve uma lesão persistente no joelho e Jennifer Penney tomou seu lugar. O último ato, por exemplo, já foi todo criado em cima de Jenniffer.

Na época da estreia, em 1974, os críticos não apreciaram a obra. Acharam que o papel era “um desperdício” do talento de Antoinette Sibley. “reduzida a uma pequena escavadora de diamantes desagradável.” O preconceito misógino e artístico na veia! Afinal uma bailarina com a classe de Sibley era apenas para princesas, nunca uma jovem que gostasse de sexo e luxo. Quando Manon chegou aos palcos, com um trio de heróis devassos, houve choque e reação em todo o mundo, algo que teve um reverso de 180o nos dias atuais. Não apenas os passos são complexos e incríveis, há profundidade dramática em todos os papéis, uma oportunidade rara para bailarinos clássicos. Isso mesmo, a inocente Giselle tem sua cena de loucura, Odette é personalizada por Odile, mas Manon é uma jovem que tem a vida transformada e termina seus dias no pântano de Nova Orleans. Super entendo todas as bailarinas que sonham em interpretá-lo.

McMillan não viveu para ver que sua obra inverteu o cenário de “fracasso” em “sucesso” e ficou muito magoado com as críticas negativas na estreia. Apenas nos anos 1990s ganhou nova perspectiva (eu assisti à produção do balé do Opéra de Paris, em 1998, e minha amiga achou tudo “muito ousado”), em um momento menos casto, se assim acharmos melhor resumir. Manon passou a ser vista como uma mulher imperfeita? Sim. Sedutora? Claro, mas igualmente moderna. A perfeita da extravagante e licenciosa Paris do início do século 18. Lebrando que Prevost era um padre diz ainda mais que ele tenha retratado o universo libertino da época. Manon usa o sexo para escapar da pobreza ao aceitar ser vendida por seu irmão ambicioso, mas, ao tentar salvar Des Grieux, seu grande amor, condena os três à morte. Ou seja, Manon era uma mulher inteligente, prática, honesta e apaixonada. Uma heroína, nunca uma “mulher caída”.

Dos livros, Manon encontrou a ópera antes que MacMillan a traduzisse para o ballet. Sua coreografia de erotismo acrobático é incrível. Como sua esposa e biógrafos reconhecem, toda obra do coreógrafo é em cima de “pessoas sexualmente motivadas”. Julieta inclusive, tá? Mas, ele não queria chocar, queria mais realismo e atualidade na dança clássica. Mais do que qualquer outra de suas obras, Manon é o melhor veículo. 

Entre as estrelas atuais da próxima temporada estão Natalia Osipova e Reece Clarke. Mas sem dúvida, a vida de Manon vai expandir o tempo e será um dos mais respeitados balés de todos os tempos. Coisas da História, da Arte e de Gênios como Kenneth McMillan.


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