A dança clássica como a conhecemos hoje deve muito à família Taglioni. Até o dia em que Marie Taglioni entrou no palco de dançou nas pontas dos pés, a dança era uma coisa. Com ela, passou a ser mágica. Mais ainda, em um universo onde os homens dominavam os palcos, a partir de Marie a dança passou a ser essencialmente feminina e ela foi uma das primeiras grandes estrelas do balé, sua primeira super estrela.
Sua lenda é cultuada até hoje e em abril de 2024, completam 220 anos de seu nascimento. Vale lembrar sua trajetória.

Nascida em uma família de artistas, ela era corcunda, mas superou a limitação para se tornar a maior
A vida de Marie estava destinada aos palcos desde o berço. Nascida em Estocolmo, Suécia, do lado materno vinha de uma longa linhagem de cantores de de ópera e, do lado do pai, de tradicionais bailarinos italianos. Não sabemos como era sua voz, mas desde cedo foi treinada para dançar.
Nada sugeriria que a pequena Marie teria chance como bailarina: embora tenha começado a ter aulas de balé muito jovem, foi descartada por seu professor quando tinha apenas seis anos por causa de sua corcunda. E não era um professor qualquer, Jean-François Coulon era o melhor mas dizia que além do problema da coluna, tinha braços e pernas excessivamente longas além de um rosto alongado muito sem atratividade. Ele chamava Marie de “la petite bossue”, ou a pequena corcunda, sem chance um dia poder dançar. Filippo Taglioni não concordava.
Decidiu que ensinaria à filha pessoalmente e muitos creditam à esse investimento a lendária habilidade técnica da bailarina. Quando os Taglionis foram transferidos para Viena, onde Filippo foi nomeado mestre de balé da ópera da Corte, o exigente coreógraf a isolou em um apartamento perto do teatro e por um ano, a treinou em um rigoroso regime de treinamento.
Diariamente, Marie começava o dia com duas horas na parte da manhã, com os exercícios mais difíceis e voltados para as pernas. À tarde vinham mais duas horas, agora com foco em movimentos de adágio (os mais lentos), para a refinar a postura. Essa parte era particularmente mais importante porque Marie tinha o hábito de se curvar para a frente, por conta das costas arredondadas, criando o oposto da imagem que a dança clássica demandava. Havia mais duas horas para o equilíbrio, completando seis horas por dia, todos os dias.
O brilhantismo de Filipo se revelou não apenas pelo método, mas principalmente porque, para disfarçar as limitações físicas da filha, criava passos com movimentos mais amplos, que demandavam força, evitando piruetas. O uso de poses exclusivas e de Port de Bras que criou para ela passaram a ser passos obrigatórios do Ballet Romântico.
Durante o processo de transformar o patinho feio em uma sílfide, Filippo não era um pai amoroso, mas um professor severo. Quando a julgou pronta, ele escalou Marie para estrelar La Reception d’une Jeune Nymphe à la Cour de Terpsichore. As imagens etéreas de ninfas e fadas seriam sempre o forte de Marie Taglioni.
Sucesso antes das sapatilhas de ponta

Do início ao fim de sua carreira, Marie sempre esteve ligada ao pai. Antes de ingressar no Corpo de Baile do Ópera de Paris, ela dançou em Munique e Stuttgart, sempre encantando a platéia onde estivesse.
Os nomes dos balés revelavam que tudo que Filippo fazia era para destacar a versatilidade de sua filha: La Sicilien, La Fille du Danube, La Ginata, e L ‘Ombre são alguns dos balés que ela dançou e foi ganhando prestígio em toda Europa. Alguns historiadores reclamaram do ‘controle’ exercicido por Filippo sobre Marie porque ela praticamente só dançava o que ele criava para ela e outros, como Théophile Gautier, que a via como “um poema vivo”.
Em breve ele faria sua filha a lenda que é até hoje quando criou especialmente para ela o balé La Sylphide e ela viraria uma super estrela.
Uma sílfide, inovações e invenção do “balé branco”
Em 1832, o balé La Sylphide mudou a dança clássica para sempre. Sim, foi o primeiro balé onde uma dançarina aparecia na ponta dos pés, assim como sua saia de tule era mais curta (um escândalo para a época). E também, ao usar a mágica espiritual das sílfides, estabelecu a tradição dos atos “brancos”, repetidos em O Lago dos Cisnes, La Bayadère, Les Sylphides e, claro, Giselle.
Desde que foi usada pela primeira vez, a sapatilha de ponta transformou a estética do balé. Foi criada como lógica, pois espíritos como sílfides não tocariam o chão), mas a dança nunca mais foi a mesma. E Marie Taglioni, para sempre, virou o sinônimo de uma ballerina.
Dividido em dois atos, havia duas versões: a original, de Filippo Taglioni, de 1832, e de August Bournonville, que estreou quatro anos depois, em 1836. Justamente é a de Bournonville que sobreviveu e é um dos balés mais antigos do mundo ainda em produção (perdendo para La Fille Mal Gardée).

Com música de Jean-Madeleine Schneitzhoeffer e libreto de Adolphe Nourrit, foi baseado no conto Trilby, ou Le Lutin d’Argail, de Charles Nodier, La Sylphide foi feito por encomenda para Marie.
A trama se passa na Escócia, onde James Ruben, é acordado por uma sílfide que o observa amorosamente e se apaixona pelo espírito, embora esteja noivo e para se casar. Uma bruxa, a Velha Madge, aparece para James e faz algumas profecias: a noiva dele o abandonará por seu melhor amigo e avisa que ele mesmo ama outra. A sílfide reaparece e se declara a James, que a beija apaixonado. Na hora do casamento, ela o distrai e ele abandona a noiva, seguindo a sílfide para o bosque, mas ela sempre escapa de seu toque. Madge o entrega um lenço mágico, que lenço amarrará a sílfide a ele e assim ela não conseguirá escapar. Quando segue a orientação da bruxa, as asas da Síldide caem e ela morre nos braços de James. Tudo fazia parte do plano da bruxa invejosa que queria matar o espírito livre.
La Sylphide ficou muito associado à Marie Taglioni e marcou a vida de outra lenda da dança, Emma LIvry também. A mania do público por Marie foi tanta que mulheres copiaram seus penteadeo, criaram bonecas iguais a ela e outros produtos “La Sylphide”. Dizem que até. Arainha Vitória teve uma boneca La Sylphide quando pequena.
Em 1892, Marius Petipa remontou a obra para o Balé Imperial, com música adicional de Riccardo Drigo, mas depois La Sylphide caiu no esquecimento. A versão de 1972 do Opéra de Paris (a que foi montada no Brasil, com Ana Botafogo, nos anos 1990s) é a ‘oficial’ dos últimos 50 anos, coreografada por Pierre Lacotte.
Muitos lamentam que a coreografia de Filippo Taglioni foi irremediavelmente perdida, Lacotte precisou de imagens e notas para tentar recriar algo próximo do original de 1832, mas é, na verdade, inteiramente nova. E linda.
A conexão entre Marie Taglioni e Emma Livry
A jovem francesa, Emma Livry, tem uma das histórias mais trágicas do Ballet, uma promessa que não foi realizada pelo acidente que veio a tirar a sua vida. Ela estrelou a produção de 1858 do balé La Sylphide, nove anos depois da aposentadoria de Marie (em 1847). Dizem que quando viu Emma no palco, no papel que fez uma lenda, a primma ballerina teria se emocionado profundamente, a “adotando” e ensinando sua técnica pessoalmente, oficializando que via Emma Livry como sua sucessora. Infelizmente não era para ser.


Foi para Emma que Marie criou sua única coreografia, o ballet Le papillon, que virou a assinatura de sua pupila. Quando se preparava para entrar no palco em uma apresentação dessa obra, Emma fez o gesto habitual de sacudir a saia de tule, mas acidentalmente sua roupa pegou fogo. Era o tempo de iluminação a gás e esses acidentes eram comuns, mas o de Emma Livry foi o pior de todos os tempos. Quase 70% do seu corpo foi queimado, especialmente as pernas. Emma ainda sobreviveu com dor e ferimentos por mais um ano. Morreu com apenas 21 anos. Uma das histórias mais tristes da dança.
A despedida de Marie ao lado das três outras maiores bailarinas de seu tempo
Antes de deixar os palcos, Marie Taglioni aceitou uma oferta de dançar por três anos em São Petersburgo, com o Ballet Imperial. Dizem que aceitou o contrato porque sua rival, a popular Fanny Elssler, tinha entrado para o Ballet da Ópera de Paris e Marie não queria dividir os holofotes. Seja como for (tem também o drama de sua vida pessoal intererindo), ela foi para São Petersburgo e lá ela era cultuada como uma super estrela. Reza a lenda que um par de sapatilhas usadas foram leiloadas por uma fortuna apenas para serem cozinhadas e servidas para os fãs.
Quando deixou a Rússia, fez outra lendária apresentação no curto balé conhecido como Pas de Quatre, ao lado das famosas Lucile Grahn (que substititiu Fanny, que se recusou a dançar), Carlotta Grisi e Fanny Cerrito, com coreografia de Jules Perrot.
Como a maior estrela entre elas, Marie Taglioni foi a última das quatro a fazer o solo e todo balé é uma homenagem à ela, sendo que não tem uma trama específica e representa as qualidades etéreas da bailarina.
Dois anos depois, ela deixou os palcos. Sua vida pessoal tomaria seu foco e o balé se despediu da que era considerada a maior de sua época.

De Prima Ballerina à Condessa: Marie se aposentou com título, mas viveu escândalos e dramas
No mesmo ano em que encantou o mundo como La Sylphide, em 1832, Marie Taglioni passou a assinar como a Condessa de Voisins, ao se casar com o conde Auguste Gilbert de Voisins. A união não foi feliz por muitos anos, na verdade, chegou ao fim em apenas três. E aí veio o escândalo.
Com uma lesão em um de seus joelhos, Marie se afastou dos palcos por algum tempo, mas foi a um baile de máscaras, em janeiro de 1836, onde conheceu o poeta Eugene Desmares. Um fã leal, Eugene era filho de uma atriz e um dramaturgo, e na sua paixão por Marie escreveu poemas e cartas em sua homenagem. Dizem que eles imediatamente se tornaram amantes e ele participou de um duelo para defender a sua honra. Seja como for, ela engravidou nesse período e muitos alegam que Eugene é o verdadeiro pai de sua filha, embora oficialmente a paternidade seja do marido dela.
Seu amante que fez o libreto do balé La Fille du Danube, com música foi Adolphe Adam, um balé que estrelou meses depois de ter dado luz à sua filha. Como em La Sylphide, a bailarina incorpora um ser sobrenatural, uma ninfa da água que lembra o conto de Hans Christian Andersen, A Pequena Sereia, publicado no mesmo ano em que La Fille du Danube. Infelizmente o público não respondeu ao balé como esperado, sem o mesmo sucesso de produções anteriores.

Quando Marie aceitou dançar na Rússia (por três anos), Eugene a acompanhou, mas nunca voltaria à França pois morreu repentinamente em São Petersburgo. Uns dizem que foi um “acidente de caça”, mas as cartas de Marie sobre sua morte sugerem algo diferente. Ela escreveu que era impossível encontrar algum consolo: “Perdi muito. A doença dele foi muito curta, 15 dias, mas ele sofreu muito, morreu como um anjo”, escreveu.
De volta à Paris, Marie teve um outro filho em 1842, também oficialmente de Gilbert de Voisins, mas de pai desconhecido.
A bailarina se aposentou da dança em 1847 e se foi viver em Veneza, no Palazzo Santa Sofia, no Grande Canal. Os filhos de Marie se uniram a pessoas ricas e de título, sendo que a primogênita se casou com o príncipe russo Alexander Trubetskoy, com quem teve cinco filhos.
Enquanto seus filhos ficaram bem, Marie Taglioni passou dificuldades no final de sua vida, mesmo tendo acumulado uma fortuna que perdeu aos poucos. em 1858, já estava falida. Para se sustentar, voltou para Paris onde trabalhou como professora no Balé da Ópera de Paris e conheceu Emma Livry. Marie foi uma das testemunhas de seu trágico acidente.

Também encontrou alternativa de sustento, durante a Guerra da Prússia de 1870, ensinando balé para crianças e senhoras da sociedade em Londres. Morreu pobre, em Marselha, apenas um dia antes de completar 80 anos. Seu corpo foi transferido para Paris, mas há uma divergência se está efetivamente enterrada em Montmartre ou no Cemitério de Père Lachaise. Como há muitos astros da dança enterrados no cemitério do bairro boêmio de Paris, justamente onde está o túmulo da mãe de Marie, é o que muitos consideram ser seu endereço final. Tanto que é comum que dançarinas deixem sapatilhas de ponta usadas no túmulo, como uma homenagem e agradecimento à primeira bailarina de pontas da História.
Historiadores creditam, com justiça, a figura revolucionária de Marie Taglioni como uma das artistas mais importantes do século 19. A melhor definição é do historiador, jornalista, romancista e dramaturgo Alberic Second. “Que uma dançarina, há trinta anos, fosse capaz de realizar uma revolução na arte da dança, que ainda é eficaz, é por si só surpreendente. Que essa dançarina, essa
grande revolucionária, deveria ter sido uma mulher mal feita, quase corcunda, sem beleza e sem nenhuma dessas impressionantes vantagens exteriores que comandam o sucesso, equivale a um
milagre. A arte de outras dançarinas é aprendida como um ofício, a de Mlle. Taglioni nasce de
natureza.”
Como sabemos, uma lenda.
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