Scoop: os bastidores de uma entrevista

Se a tradução do filme Scoop fosse literal estaria mais próxima da verdade pois diria “furo de reportagem” e não A Grande Entrevista. O filme que aborda como a desastrosa entrevista com o príncipe Andrew foi idealizada, negociada, produzida e e exibida força a mão em um ótimo trabalho, cujo resultado tem menos a ver com os jornalistas e mais com o erro de julgamento do Príncipe. Porém juntar jornalistas investigativos e Família Real é bombar com os algoritmos e na plataforma de The Crown e Meghan e Harry – a Netflix – ter um filme com mais um dos Windsors é quase obrigatório a essa altura.

O argumento para transformar a entrevista que teve grande impacto no final do reinado de Elizabeth II é um tanto fraco, especialmente tantos anos depois, ainda que o que está por trás do drama seja ainda chocante. Andrew, o Duque de York, era amigo de Jeffrey Epstein e Ghislaine Maxwell, e ‘usuário’ da rede de tráfico sexual pelo qual o milionário americano foi preso em 2019. A pressão da opinião pública sobre a intimidade de um membro da Família Real com um criminoso condenado pela Justiça americana ganhou fôlego nos anos do #metoo e a inabilidade do príncipe e sua equipe de lidarem com a cultura atual foi algo marcante para qualquer um que acompanhou o drama. Ainda assim, o filme deixa a desejar.

A má fama do Príncipe e as amizades suspeitas

Quando ainda era o terceiro na linha sucessória (atrás de Charles), o jovem príncipe Andrew tinha bastante popularidade entre os súditos, refletindo a relação como uma espécie de William e Harry da geração anterior. Assim como o sobrinho afilhado, Andrew era considerado carismático e protagonista de festas, pequenos escândalos e fofocas, o ‘favorito’ da Rainha e, como o sobressalente, com maior liberdade de errar, afinal era bem difícil que viesse a ser Rei.

O namoro com atrizes e modelos famosas de seu tempo, o casamento com a plebeia Sarah Fergunson e amizade com a cunhada, Princesa Diana, mantiveram Andrew numa bolha de proteção que o tempo foi reduzindo, mas que aparentemente ele não acompanhou. De engraçado ganhou fama de grosseiro e arrogante, de conquistador passou a ser questionado pelas escolhas de suas amizades e assim foi navegando pelo século 21. Nada disso é colocado com a devida perspectiva no filme, que assume que quem assiste é expert em Família Real, mas que falha em explicitar como a própria assessoria do Duque não percebeu a furada na qual ele estava se metendo.

Até se divorciar de Sarah Ferguson no final dos anos 1980s, em meio à escândalos de estar sendo traído pela esposa, Andrew era o herói de guerra e pai dedicado às filhas, Eugene e Beatrice, mas, ao voltar a ficar solteiro, voltou a circular em festas e sua amizade com Ghislaine Maxwell o aproximou, assim como as filhas e a ex-mulher que ainda é sua melhor amiga, da rede de Jeffrey Epstein.

As fotos de Ghislaine, Epstein e Harvey Weinstein com as filhas do Duque, Sarah e o próprio Andrew são ainda hoje de deixar o queixo caído pois o trio mais proeminente dos crimes sexuais que finalmente são considerados intoleráveis era claramente parte do rol de amigos dos Yorks, mesmo que essa intimidade ficasse – como tentam alegar – em festas de muitos convidados. Já no caso de Epstein e Ghislaine há registros mais íntimos deles em Windsor e Balmoral, palácios não exatamente abertos para circulação de pessoas estranhas.

Com as condenações criminais (e morte, no caso de Epstein) dos três, foi ficando difícil para Andrew se livrar da cobrança pública de sua participação nos crimes. E foi onde ele escorregou. Andrew era um dos mais frequentes visitantes da ilha de Epstein, assim como suas casas em Miami e Nova York, sendo nominalmente citado nos processos contra o milionário. Ele estava queimado na opinião pública e o silêncio do mantra imposto quanto a nunca se explicar foi piorando tudo. Em 2019 o caso estava no auge e não haveria escapatória nem mesmo para a Realeza.

A decisão de Andrew de ‘desobedecer’ a estratégia de silêncio do Palácio era um desastre anunciado e ainda é chocante que ninguém do lado dele tivesse percebido. É essa a história, ou poderia ter sido, de Scoop.

Os bastidores de uma entrevista que não é grande, mas sim fatal

Scoop tem como base o livro escrito pela produtora Sam McAlister, que era produtora do Newsnight, da BBC e que conseguiu emplacar a entrevista. Portanto, reforça o papel das jornalistas mulheres que conseguiram o furo. Vale lembrar que todas entrevistas com membros da Família Real são ultra controladas, a única que tinha saído dos moldes tinha sido Diana e mesmo assim quando já estava separada de Charles.

Tanto Diana quanto o atual Rei tinham abalado as estruturas da Monarquia com entrevistas cândidas sobre seus problemas matrimoniais, algo que fez com que a regra do “nunca reclamar, nunca explicar” tivesse ainda mais peso nos anos seguintes. Por isso, o trabalho de Sam (Billie Piper) é considerado tão relevante. Ela que tem origem proletária e não fazia parte dos jornalistas que cobrem a Realeza, estava com o fantasma do desemprego rondando, não era popular com os colegas, mas tinha faro jornalístico. Ela percebeu que haveria uma oportunidade de fazer História e seguiu seu instinto.

Se você não acompanha a cobertura da Família Real, aqui vai um adendo. Há “especialistas” cujo acesso aos membros da família é controlado pela equipe de comunicação de cada um. A Rainha tinha sua equipe e os repórteres que eles consideravam confiáveis, Charles tinha os dele, e assim por diante. Andrew também tem uma equipe que cuidava de sua imagem. E do lado da imprensa, os tabloides como Daily Mirror (da família de Ghislaine Maxwell) são considerados menores em aspecto de notícias, explorando escândalos e famosos. Sam era muito “Daily Mirror” para os colegas da BBC, como ouvimos um deles reclamar. Ter isso em mente contextualiza melhor tanto a vitória dela como os obstáculos que enfrenta.

Por sagacidade profissional, Sam tem acesso à Amanda Thirsk (Keeley Hawes), secretária particular do príncipe Andrew e que está angustiada com a imagem negativa que a imprensa vem vendendo dele. O filme não explicita o suficiente, mas Sam manipula Amanda alegando que dará espaço ao príncipe para falar do trabalho dele, sem esconder que também quer saber da ligação dele com Epstein, algo que ganha ainda maior importância quando o milionário morre e uma das testemunhas principais do abuso com menores cita ter tido relações com Andrew. Todos querem saber se é verdade e o que ele tem a dizer.

A tempestade perfeita

Sem perder tempo em apresentar ninguém para um público maior, Scoop acelera toda negociação para o momento em que Sam se junta à produtora Esme Wren (Romola Garai) e à apresentadora Emily Maitlis (Gillian Anderson) para conseguir a entrevista exclusiva. A parte na qual todos se preparam para o grande momento é o ponto alto do filme.

O ‘azar’ de Andrew, extremamente bem interpretado por Rufus Sewell, vai além de sua arrogância, que pode ser entendida como consequência do isolamento do membros da Família Real. Amanda Thirsk é quase inocente e sem distanciamento depois de trabalhar com ele por sete anos, ela se recusa a acreditar nos piores rumores sobre seu chefe real e está preocupada em reabilitar sua imagem pública, sem perceber que a única maneira seria a que ele jamais considerou: se explicar e se desculpar.

A sequência da frustração do príncipe quando uma funcionária (Mia Threapleton, filha de Kate Winslet) erra ao arrumar sua coleção de bichos de pelúcia, um fato verídico e assustador, deixa claro o quanto Andrew não estava pronto para o que enfrentaria. E logo percebemos que nem Amanda poderia estar onde estava. Tempestade anunciada.

Mesmo com o apoio da princesa Beatrice (Charity Wakefield), que acredita que nos tempos atuais o silêncio é pior para a imagem de seu pai, eles caem nas armadilhas de um bom jornalismo, que incluem perguntar qualquer coisa ao entrevistado. O assessor Jason Stein (Alex Waldmann) tenta alertar e desiste do trabalho quando percebe que a inocência de Amanda, que já se sente como parte indireta da Família Real, é incontrolável. Ela acha que todos verão Andrew “como ele é”, sem perceber que é justamente esse o maior dos perigos.

Uma reconstituição apurada, mas paradoxalmente, falha

É preciso mencionar novamente que a pior falha de todas da história de Scoop é de virtualmente ignorar as vítimas principais de todo crime: as adolescentes abusadas por Epstein e seus amigos/parceiros. Sim, o filme é especificamente a queda de Andrew, e sim, as vítimas são mencionadas, mas no final das contas, não exatamente o suficiente.

Recomendo buscar a entrevista verdadeira no Youtube para ver como a melhor parte de Scoop é apenas a reprodução da gravação. As respostas do Príncipe são ridículas na maior parte do tempo, descontroladas e como sabemos, desastrosas. Mas não têm o peso do absurdo quando nada mais é efetivamente mostrado.

A cena de Andrew literalmente nu, percebendo que virou piada, é tão gráfica quanto metaforicamente forçada pelo roteiro. E mais do que ele, é Amanda que é retratada como patética e incompetente. Para piorar, depois de todo drama ao redor da vida pessoal de Sam, ela é relegada para segundo plano com o destaque se dão à Emily, que tem uma frustração de uma antiga entrevista que não foi bem ao confrontar Bill Clinton que nenhum de nós entende, lembra ou nem mesmo se importa. Emily parece se arrepender de ter feito como todos em seu tempo, condenar Monica Lewinsky e perdoar o ex-presidente americano portanto ao defender Virginia Giuffre contra o Príncipe Andrew seria sua chance de se redimir. Aí seria um ângulo interessante para entender a entrevistadora, mas Scoop passa batido.

Portanto há momentos de expectativa que o drama vá decolar, mas que o medo ou a preguiça prevalecem. No final das contas, Scoop é paradoxalmente abusivo e oportunista como as personagens que pretende querer expor. O sensacionalismo dos tabloides que condenam não está nada longe do que fizeram com a entrevista e nem mesmo como o conto atual de como uma personalidade pública pode ser destruída por falta de autocrítica é o resultado final. Infelizmente, essa tem siso da assinatura da Netflix em quase todos seus conteúdos.

Ainda assim, por conta de uma grande atuação de Rufus Sewell, Scoop pode ser visto como um estudo de um dos piores momentos de colapsos público da Família Real em sua história recente. Superficial, indeciso e inconclusivo, mas que funciona como um ‘spin-off’ do que ficou de fora de The Crown. Se um dia forem fazer algo parecido sobre a entrevista de Meghan e Harry para Oprah Winfrey, espero que estejam mais preparados. Sobre Andrew? Em breve veremos a versão da Amazon Prime Video, que escolheu o livro e a narrativa de Emily Maitlis, já gravado e estrelado por Ruth Wilson, provavelmente lançado ainda esse ano. Aguardamos!


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