Havia rivalidade entre Pavlova e Kasarvina?

Em tempos atuais é incômodo pensar como por tantos séculos a sociedade patriarcal tenha contribuído para criar o mito da rivalidade feminina. No universo do balé então, as disputas de solistas pelas oportunidades de brilhar rendem mil lendas, explorando menos as grandes amizades que existiram também. Filmes como Cisne Negro calcaram a trama na competitividade dos bastidores de uma companhia de balé, o que é inegável, mas espero que coisa do passado.

Há sempre uma questão ainda mais complexa na dança que é a rivalidade por idade, que independe de gêneros. Bailarinos têm carreiras muito curtas e intensas, por isso papéis de destaque desde cedo são muito importantes. E se no passado Fanny Elssler e Marie Taglioni antagonizavam, no início do século 20 as duas maiores estrelas russas que brilharam no ocidente, Anna Pavlova e Tamara Karsavina, tampouco se bicavam. Seria mito?

Estrelas gêmeas do balé russo: a classicista e a romântica

Em tempos de lendas da dança, deve ter sido incrível estar em Paris em 1913 e poder ver no mesmo palco lendas como Kasarvina, Pavlova e Vaslav Ninjinsky, para citar poucos pois havia ainda os compositores, os cenógrafos, maestros, coreógrafos, escritores e outros bailarinos que entraram para a História. E aconteceu, todos se apresentaram em mais de uma oportunidade naquele ano, parte do Ballets Russes de Serge Diaghilev.

Eram tempos difíceis na Rússia, com a tensão política crescendo e pré-revolução. A rivalidade entre as duas estrelas da companhia faz com que raramente se cite uma sem mencionar a outra, o que não é exatamete “prova” de algum conflito. Tampouco elimina a dúvida.

Os bastidores do Ballet Imperial não eram fáceis. São várias as histórias de brigas e até armadilhas de bailarinas tentando atrapalhar a apresentação da outracomo Mathilde Kschessinska, que só ajudou um pouco Anna Pavlova quando a considerava mas fraca e menor concorrência. Isso porque como estava grávida, Mathilde não poderia dançar La Bayadère e teria treinado Anna Pavlova pra o papel de Nikya duvidando que pudesse superá-la, justamente o que aconteceu com o público encantado com a figura etérea e frágil de Pavlova, fazendo dela uma estrela.

Um acidente, uma discussão, lágrimas e rancor


Embora não se encontre registros fáceis de Pavlova falando de Kasarvina, essa mencionou uma pequena crítica em sua autobiografia, Theatre Street: The Reminiscenses of of Tamara Karsavina, lançado em 1931, o mesmo ano que Anna morreu.

No livro, Kasarvina parece ser generosa quando fala de Pavlova, mas perceba que diz que “Pavlova naquela época mal percebeu que em sua forma ágil e em suas limitações técnicas estava a maior força de sua personalidade encantadora.” Ou seja, faltava refinamento nos passos, mas sobrava carisma. Não deixa de ser uma cutucada.

Em 1982, no documentário Um Retrato de Giselle, Karsavina volta a falar dos tempos do Ballet Imperial e admitiu que tinha rancor de Pavlova, graças à uma apresentação de Giselle, em uma noite no qual seu corsete, que deixava seus ombros à mostra, se soltou por causa de um “mau funcionamento do guarda-roupa”. Foi como a cena do filme russo Mathilde (sobre Mathilde Kschessinska) , no qual a bailarina acidentalmente expôs seu seio nu. A vergonha ficou ainda pior com os comentários de Pavlova. “Ela veio até mim furiosa, e disse que eu era indecente”, disse Kasarvina, “e outras palavras malvadas foram trocadas. Eu, é claro, chorei”, lembrou. Imediatamente ela comenta que Olga Preobrajenska, que também testemunhou o acidente, fez questão de ser carinhosa. “Ela sempre foi muito boa comigo”, confessou”, “mas o aval principal veio de seu pai, o ex-bailarino Platon Kasarvin. “Ele viu a apresentação e elogiu as minhas piruetas, o que foi um prazer e me consolou um pouco”, completou visivelmente ainda emocionada.

Origens diferentes, ciúmes desde a escola

Anna Pavlova nasceu em São Petersburgo e teve uma infância muito pobre, se apaixonando pelo balé quando tinha apenas 9 anos. Enfrentou muitos problemas, um dele o de não ter o biotipo das dançarinas da época porque era mais magra e tinha os pés arqueados. Sua fragilidade física levaram a passar por bullying com os alunos a apelidando de “vassoura” e “selvagem” e fazendo piadas sobre ela. Do momento que pisou no palco ela viveu uma vida dedicada à promover o balé no mundo, quase como uma religião. Era uma super estrela.

Já Tamara, que também era natural de São Petersburgo, o fato de ser filha de um grande bailarino russo, Platon Karsavin, a ajudou e atrapalhou. Sim, hoje ela seria chamada de “nepo baby”. Kasarvin era professor na escola do Balé Imperial, que hoje é a Academia de Balé Vaganova, e entre seus alunos estavam Michel Fokine, futuro partner e namorado de sua filha, e, claro, a própria Tamara.

O Kasarvins eram intelectuais, mas tiveram seus problemas financeiros também quando Platon foi forçado a se aposentar (após um desentendimento com Marius Petipa). O talento de Karsavina era tanto que se formou antes do previsto, antes de completar dezoito anos, e sua ascensão meteórica na hierarquia da companhia, rapidamente virando uma das principais, certamente rendeu ciúmes.

Na batalha da popularidade, Pavlova reinou absoluta

Tanto Pavlova como Kasarvina assinaram contrato com Diaghlev e estavam na lendária temporada de 1913 em Paris. No entanto, mesmo tendo virado a maior celebridade de seu tempo, na companhia a vitoriosa era Tamara Kasarvina, cuja parceria com Nijinksy a colocou nas páginas da História.

Karsavina foi unanimamente considerada por todos, incluindo o público, como simpática e doce. Ela era considerada perfeita para o “novo” balé idealizado por Diaghilev e Michel Fokine (esse sendo profissional com ela, mas magoado porque a bailarinha se recusou a se casar com ele). Dessa polarização percebida pelos fãs, Pavlova passou a ser referenciada como a “classicista”, a dança era o que mais importava e Karsavina passou a ser vista como a “romântica”, onde a expressividade pesava mais do que a técnica.

É inegável que Tamara Kasarvina criou alguns dos papéis ainda mais importantes da dança clássica: a bailarina de Petrouchka, a jovem de L ‘Espectre de La Rose, Les Sylphides e muitos outros. Para Pavlova, Michel Fokine criou o que veio a ser sua assinatura: A Morte do Cisne, uma peça que ela dançava em todas suas apresentações e que marcaram as vidas de muitos artistas, incluindo Frederick Ashton que decidiu ser bailarino depois de ver Anna Pavlova nos palcos e disse que todos seus balés sempre a tinham em mente como musa.

Segundo o crítico Alistar McCalister, mesmo aos 80 anos Ashton lembrava de Pavlova com detalhes e fervor, lembrando detalhes de sua técnica. Curiosamente, um dos papéis mais iconicos de Tamara Kasarvina, O Pássaro de Fogo, era para ter sido da rival, mas ela não gostou da música de Stravinsky e preferiu trabalhar na Morte do Cisne. Tudo deu certo no final!

O teste do tempo deu à vitória à Pavlova, de alguma maneira. A crítica do NY Times, Anne Kisselgoff, definiu perfeitamente em um artigo de 1978 sobre as duas:Tamara Karsavina e Anna Pavlova foram as estrelas gêmeas do firmamento do balé russo que explodiu no Ocidente pouco antes da Primeira Guerra Mundial e do qual a nossa parte do mundo ainda não se recuperou”, abriu o artigo, escrito justamente para destacar a relevância de Kasarvina no Ballet, sob a sombra de Anna Pavlova, cuja determinação de viajar o mundo, combinado com seu talento ímpar, fazem dela ainda no século 21 ser sinônimo da dança e conhecido por gerações que só a conhecem por fotos ou trechos de vídeos no youtube.

“Os papéis que Karsavina criou para os Ballets Russes de Serge Diaghilev são dançados hoje em todos os continentes, e foi em grande parte por causa da arte de Karsavina e de seu parceiro, Vaslav Nijnsky, que os Ballets Russes tiveram seu lendário impacto em Paris em 1909 e em Londres. em 1911″, Kisselgoff explicou.

Afinal: quem era a melhor?

Curiosamente, depois da Revolução Russa, tanto Anna Pavlova como Tamara Kasarvina elegeram Londres como sua casa, sendo que Anna vivia viajando. Será que se visitavam?

Tamara Karsavina foi uma das fundadoras da Royal Academy of Dance (RAD), onde dava ênfase na expressão em detrimento da tradição rígida, algo representado por Pavlova. Adorada por todos e sempre citada como generosa, Kasarvina faleceu em 1978, 47 anos depois da rival.

Quem viu ambas dançar não pestanejava em manter a polarização acesa. No documentário Um Retrato de Giselle, Anton Dolin pergunta indiretamente se Kasarvina era melhor e Olga Preobrajenska responde sem pestanejar: “não, era a melhor pessoa”, responde claramente fazendo a comparação entre elas.

Bronislava Nijinska sustentava a mesma opinião, porque quando Frederick Ashton perguntou a ela “quem foi a maior bailarina de todas?” ela respondeu imediatamente: “Pavlova”. Para ter certeza, ele insistiu: “E quanto a Karsavina?” Nijinska respondeu: “Belle femme; belle femme” (Bela mulher, Bela Mulher).

Temos que considerar a questão decidida, não é?


Descubra mais sobre

Assine para receber nossas notícias mais recentes por e-mail.

1 comentário Adicione o seu

Deixe um comentário