Dançar O Lago dos Cisnes é um desafio que divide bailarinas das ballerinas. Isso não apenas porque são quatro atos, densos, difíceis fisicamente e emocionalmente, ele dá a oportunidade à estrela de dançar dois papéis de personalidade opostas – Odette, a romântica e sofrida princesa e Odile, a sedutora antagonista – portanto também é a oportunidade de interpretação em uma única noite.

A dualidade dos papéis é há mais de 100 anos um clássico entre os clássicos e quem quer que tenha usado sapatilhas um dia, ou não, é fascinada por ela. Tem uma pegadinha. No fundo, somos todas apaixonadas por Odile. Seu charme encanta a gente tanto o quanto Siegfried!
Quem é Odile?
Na origem, Odile não era uma sósia de Odette, mas isso mudou bem no início. Sabemos pouco sobre Odile, por isso é preciso olhar para o seu pai, o mago Von Rothbart, que almadiçoa Odette e a transforma em um cisne.
A motivação do bruxo de colocar sua filha no meio da trama tem a ver tanto com Odette como Siegfried. Sua mágica não supera o amor verdadeiro e com grande facilidade ele consegue expor o príncipe que não mantém seu juramento à Odette e destruir qualquer esperança dela de um dia voltar à forma humana. Curiosamente, Von Rothbart só é visto em forma humana no 3º ato, nos dois outros aparece como uma coruja gigante. Daí é ainda mais curioso o mistério sobre sua filha.

A vemos quando ela acompanha o pai no baile de Siegfried. Isso porque, para manter Odette presa à maldição, Rothbart transforma Odile na imagem da princesa. Siegfried portanto é incapaz de perceber a diferença, por isso “erra” e jura seu amor a Odile e a pede em casamento. Assim, quando vemos Odile pela última vez, ela está celebrando sua vitória contra a inocência dos amantes. A maldade prevalesce.
Nem sempre foi assim.
Nem sempre vestindo preto
Na montagem original, O Lago dos Cisnes era um balé que proporcionava a oportunidade para duas solistas em uma única noite, algo típico de muitas produções. Mas já em 1877, Pelageya Karpakova foi Odette e Odile na mesma noite. Nascia a tradição do papel duplo em vez do duelo.
Ainda assim, Odile não era o ‘cisne preto’ nem vencia por conta da magia sozinha. Com roupas de cores fortes, a filha de Rothbart efetivamente seduzia o príncipe, fazendo da história algo ainda mais triste. Segundo historiadores, apenas a partir dos anos 1930s que surgiu a tradição de Odile ser mais do que “parecida” com Odette: seria seu espelho na cor oposta.


Faz muita diferença para entender Odile tentar saber a razão de Rothbart ser obcecado em fazer Odette sofrer. Ele faz das demais moças cisnes também, por que ele quer tanto manter Odette sob a forma de cisne?
Seja como for, a sedução de Odile é poderosa: no fundo, toda bailarina adora dançá-la e quase a prefere à Odette. Odile é viva, é manipuladora e sim, trouxe para o mundo da dança os famosos 32 fouetées, não há como entrar no palco e sair sem uma chuva de aplausos. A mágica é inegável.
“Minha” teoria sobre Odile
Tenho uma versão muito pessoal sobre Odile, que vou partilhar pela primeira vez. Primeiro, sempre achei problemático que sua existência na história seja para alimentar a negativa crença feminina de competitividade, de sedução e de maldade, deixando o volúvel Siegfried completamente “inocente” por ter jurado uma coisa e apenas horas depois quebrar sua promessa. Essa narrativa dá à Odile charme, mas tira a profundidade do principal papel masculino.
À parte disso, sempre me deixou em dúvida de onde vinha e para onde ia Odile antes e depois do 3º ato. Afinal, no 2º ato só vemos cisnes brancos, mas no 4º, alguns pretos. Por que – se ela fazia parte do jogo – não veio em auxílio do pai quando o casal se reconcilia e quebra a maldição?

Muitas perguntas, eu sei. A primeira é sobre o que o bruxo quer para Odette. Rothbart é a sociedade patriarcal que reduz a mulher a um objeto. Ele é o mal que quer que a esperança não apenas perca, mas que lute perdendo. Ao almadiçoar Odette, a transformando em um cisne durante o dia e mulher à noite, ele garante que ela jamais será efetivamente vista como é. E, um dia, sucumbiria à maldade de Rothbart, simbolizada pela cor escura de suas penas.
Se ele queria isso para Odette é porque já tinha feito isso antes, dessa forma, para mim, Odile hoje pode ser apresentada como “filha” do bruxo, mas um dia foi sua vítima também. Sem um Siegfried em sua vida, Odile perdeu sua empatia e humanidade, se submete à ser transformada na imagem de outra porque ela quer condenar o homem e o amor que não a salvou e fazer com que outra alma sofra como sofreu. Odette, que é o símbolo da sororidade (ela defende a vida dos outros cisnes com a sua), que sempre acredita no amor, perdoa a fraqueza de Siegfried e se sacrifica não por amor ao príncipe, mas por seu heroísmo de salvar outras mulheres da mesma maldição.
O que acham dessa versão?


Mas na verdade confesso que diante da informação de que um dia Odile conquistou Siegfried por mérito próprio, sempre torci para ver isso de novo no palco. Seria sim um duelo, mas que nos dias de hoje demandaria que as duas conseguissem vencer o bruxo. Até poderiam perdoar Siegfried e viver um trisal, quem se importa? Só não teríamos, mais uma vez, duas mulheres se destruindo por manipulação dos homens. Acho que inventei um novo balé!
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