Entrevista com o Vampiro: A Transformação de Lestat e a Nova Era dos Vampiros

Precisaram de quase 50 anos para que o vampiro Lestat de Lioncourt, criado por uma inspirada e triste (na época) Anne Rice encontrasse unanimidade e sucesso nos livros e nas telas. Não por falta de tentativa! Há trinta anos, em 1994, o diretor Neil Jordan conseguiu reunir um elenco ímpar, liderado por Tom Cruise e Brad Pitt, com atores como Antonio Banderas, Stephen Rhea, Thandwie Newton e Kirsten Dunst, mas não alcançou unanimidade de crítica ou público. A série Entrevista com o Vampiro, no ar desde 2022, mudou tudo e parece ter encerrado a maldição: é hoje uma das queridinhas ao redor do planeta. Finalmente?

Um vampiro bissexual, roqueiro e popular

Quando Anne Rice lançou o livro em 1976, depois de um período de luto por ter perdido um filho, alcançou grande sucesso por vários motivos, tanto literários quanto culturais. Com uma nova perspectiva ao mito do vampiro, um tanto escanteada na époda, ela inseriu complexidade na história, fazendo deles mais humanos do que qualquer outro autor, com emoções, dilemas morais e existenciais. Em vez de serem apenas monstros a serem temidos, os vampiros de Rice são personagens trágicos e fascinantes.

Muitos leitores e críticos também ficaram fascinados pela maneira como a autora abordou a sexualidade dos vampiros inserindo uma fluidez na época inovadora e, portanto, considerada controversa por alguns. O erotismo e a ambiguidade sexual eram ousados e desafiadores para as normas sociais dos anos 1970 e 1980 e considerados perturbadores ou inadequado. Com o passar do tempo, a série ganhou um status de culto e teve um impacto significativo na cultura pop e na literatura de vampiros, abrindo caminho para uma nova era de narrativas semelhantes, como as séries Buffy, a Caça-Vampiros e Crepúsculo.

Como sabemos, é Louis de Pointe du Lac o vampiro entrevistado do título e o formato permite acompanhar os pensamentos e sentimentos dele, numa narrativa introspectiva e filosófica sobre a natureza da imortalidade. Mas é o vampiro que transformou Louis, Lestat de Lioncourt, que nos fascina mais. Enquanto Louis choraminga sua constante luta interna, sua visão de Lestat destaca seu carisma e complexidades sexuais e morais. Igualmente inesquecível é a jovem vampira Claudia, presa para sempre no corpo de uma criança, que também adiciona uma camada de tragédia e profundidade à história, mas imediatamente é Lestat que se torna um dos personagens mais icônicos do universo de Anne Rice, voltando a aparecer em outros livros depois de Entrevista com o Vampiro, se tornando o protagonista na série Crônicas Vampirescas.

Descrito como extremamente atraente e carismático. Ele tem uma presença magnética que atrai tanto humanos quanto vampiros. Sua aparência física é marcante, com cabelos loiros e olhos azuis, e ele usa sua beleza e charme para manipular e seduzir. Além disso, Lestat se destaca como um rebelde, desafiando as normas e tradições dos vampiros mais antigos e frequentemente agindo de acordo com seus próprios desejos e impulsos, em conflito constante com outros vampiros. Um anti-herói clássico, com ações muitas vezes moralmente ambíguas, ele é capaz de cometer atos de grande crueldade e violência e, no entanto, também tem momentos de compaixão e bondade, tornando-o um personagem profundamente complexo. Um sonho para qualquer ator que não seja Daniel Day-Lewis.

Um filme cult, um astro rejeitado e dramas de bastidores

Em 1994 Tom Cruise já era o astro mais bem pago em Hollywood e também o mais adorado. A década foi marcada por sua busca tanto de crescimento artístico onde trabalhava com os melhores e mais cultuados diretores, como estrelava filmes que explodiam nas bilheterias. Um então jovem Brad Pitt ganhou força no mesmo período, alcançando semelhante status com maior facilidade.

Quando Neil Jordan anunciou que iria filmar Entrevista com o Vampiro foi uma espécie de E o Vento Levou moderno: todo mundo tinha uma opinião passional sobre quem deveria ser quem. River Phoenix chegou a ser contratado para o papel do entrevistador, mas tragicamente morreu semanas antes de começar a gravar sendo então substituído por Christian Slater. Diante da popularidade máxima de Pitt na época, aplaudiram sua escolha para Louis. A desconhecida Kirsten Dust fez sua estreia como Claudia, Banderas (que não era fluente em inglês ainda) entrou como Armand, mas Lestat se revelou uma aventura complexa.

O mais respeitado e adorado ator já era Daniel Day-Lewis, recém vencedor de um Oscar e TODOS o queriam como vampiro, fosse no Dracula de Francis Ford Coppola ou na Entrevista com o Vampiro. Para ambos os projetos o seletivo Lewis deu um sonoro “não, obrigado”. E o público reagiu agressivamente aos “substitutos”.

Enquanto Gary Oldman não era um nome que encontrasse muito reconhecimento e com isso, de alguma forma, conseguiu calar os críticos com uma atuação antológica que fez dele O ator depois de Daniel Day-Lewis, a escolha de Neil Jordan para Lestat até hoje gera discussão. Afinal, era ninguém menos do que Tom Cruise.

Uma atuação para calar os críticos

Tom Cruise era o oposto do que as pessoas esperavam de Lestat – da altura ao visual – e ninguém o via interpretando um vampiro fluido, que embarca em um romance de séculos com o torturado Louis. Mas Neil Jordan viu o contrário.

Como mencionei, a década de 90 marcou o que muitos viam como a missão de Tom pelo Oscar. Ele estava determinado a ter o reconhecimento da Academia, mas virou uma espécie de Cary Grant: quem trabalhava com ele ganhava, mas ele era esnobado. Obviamente, mesmo ainda lidando com os rumores de sua própria sexualidade (algo que parece esquecido), Tom Cruise queria ser Lestat. E nenhum diretor poderia negar pelo menos um papo com ele. Esse encontro foi determinante para convencer Neil Jordan, como ele mesmo lembrou em sua biografia anos depois.

O diretor se encontrou duas vezes com o ator em sua casa em Hollywood e percebeu que havia adequação para o papel. “[Tom] teve que viver uma vida longe do olhar dos outros. Ele havia feito um contrato com as forças ocultas, fossem elas quais fossem. Teve que se esconder nas sombras, mesmo sob a luz do sol de Hollywood. Ele seria eternamente jovem. Era uma estrela. Poderia muito bem ser Lestat”, escreveu.

O anúncio gerou reação negativa dos fãs do livro, dos fãs de Cruise, do elenco (Brad Pitt só aceitou o papel porque pensou que ia trabalhar com Daniel Day-Lewis, segundo o diretor) e em especial despertou a ira em Anne Rice. O fato de que o ator irlandês não estivesse interessado no papel e recusado o convite para o filme não era o suficiente para aplacar ânimos. “O mundo inteiro disse: ‘Você está errado’”, disse Jordan que defende sua escolha até hoje ressaltando o talento de Tom Cruise como ator, não apenas como estrela.

“Anne foi ao ar, dizendo que era como se eu tivesse escalado Edward G Robinson como Rhett Butler. Mas ela estava errada e mais tarde cresceu o suficiente para admitir isso.” (Nota para os jovens: Robinson era um ator baixinho e sem atrativos enquanto Clark Gable, que acabou aceitando estar em E o Vento Levou, era o Brad Pitt dos anos 1940s em Hollywood. A comparação era agressiva e grosseira para Tom Cruise, embora Robinson fosse um grande ator).

De fato, quando viu o trabalho de Cruise a autora publicou um anúncio pedindo desculpas e elogiando sua atuação. Para muitos, a melhor da carreira do astro.

O mesmo não se pode dizer de Pitt. Seu mau humor é flagrante e diziam na época que era por estar brigando com um enciumado e inseguro Tom Cruise nos bastidores. Não é o que Neil Jordan descreveu em seu livro. O diretor alega que ele estava exausto por ter emendado muitos filmes, em especial o trabalho de Lendas de Uma Paixão (Legends of the Fall), e que estava exausto com as filmagens noturnas assim como a natureza angustiada do personagem. “A passividade do personagem o desanimou,” explicou.

Na era digital, finalmente Lestat ganha aprovação

Quando a AMC anunciou que iria filmar o “universo imortal” de Anne Rice, começando com Entrevista com o Vampiro os céticos voltaram a torcer o nariz. O desafio era incrível porque a obra segue lendária, a tentativa do filme de 1994 está mais perto do fracasso do que do cult e novamente haveria o dilema de achar um Lestat à altura das irreais expectativas. O showrunner Rolin Jones (Perry Mason) calou todos com um elenco inclusivo e adaptações que funcionam.

Ambientado 50 anos após os eventos do filme, o entrevistador Daniel Molloy (Eric Bogosian) segue obcecado em decifrar a história do recluso Louis de Pointe du Lac (Jacob Anderson, sempre lembrado por Game of Thrones) tentou contar. Agora, em meio a uma pandemia que destruiu o senso de ordem social mundial, Louis decide retomar a entrevista uma vez que o novo cenário mundial possa finalmente ouvir sua história.

Com isso, viajamos e voltamos no tempo, com o conforto de episódios de uma hora fornece para nos envolvermos com as personagens como fazemos no livro. Sim, a inclusão fez alguns ajustes, mas há fidelidade ao original em meio à esse paradoxo. Porque mudar Louis de um depressivo proprietário de plantação para um homem negro ambicioso e enrustido ajuda a entender tanto a atração de Lestat por ele como vice-versa.

O australiano Sam Reid vem conquistando a todos como um Lestat sedutor, passional e controverso. Seu desafio era imenso diante do histórico pesado em cima do personagem e as comparações inevitáveis com Tom Cruise, mas ele já tomou o papel para si. Assim como Anderson está incrível como o instável Louis, implacável como empresário e inseguro emocionalmente. Junte-se a isso bom roteiro e grande qualidade de produção e temos um sucesso.

A terceira temporada ainda não foi anunciada, mas Rolin Jones estendeu seu contrato com a AMC o que garante que teremos mais. O próximo? Sem dúvida O Vampiro Lestat, de 1985, que mergulha no passado do vampiro anti-herói. E sim, já se fala de cross entre personagens em Mayfair Witches. Anne Rice faleceu antes desse “reboot” ser confirmado como sucesso, mas seu querido e exibido Lestat, finalmente, saiu das sombras para a glória. Já era tempo!

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