Os 90 anos do clássico Servidão Humana (Of Human Bondage), que transformou Bette Davis em estrela

Já falei sobre o impacto do filme Escravos do Desejo (Of Human Bondage) na carreira de Bette Davis, a produção de 1934 que rendeu à ela muita briga, dor de cabeça e a primeira indicação ao Oscar de Melhor Atriz. Pois é, a obra está completando 90 anos em 2024 e por se tratar de um grande clássico, merece a revistação.

O filme teve um nome diferente no Brasil, mas o livro – Servidão Humana (Of Human Bondage) – foi escrito por W. Somerset Maugham, e é um romance semiautobiográfico que explora temas de crescimento pessoal, a busca por significado e as complexidades das relações humanas. A história segue a vida de Philip Carey, um jovem com pé torto que fica órfão e é criado por seus tios rígidos e pouco amorosos. Por conta das várias rejeições que marcaram sua infância e juventude, Philip segue uma dura trajetória de autocoonhecimento e superação, permeada pela relação tóxica e abusiva com Mildred Rogers. Ela, representando todo cinismo e maldade da alma humana.

O romance começa justamente com a infância de Philip, detalhando suas lutas e a dor emocional e física causada por sua deficiência. Ele passa por várias fases da vida, incluindo estudar na Alemanha, tentar se tornar um artista em Paris e, eventualmente, estudar medicina em Londres. Ao longo dessas fases, Philip vivencia inúmeros relacionamentos e encontros que moldam sua compreensão da vida e de si mesmo.

Um dos relacionamentos mais significativos do romance é com Mildred Rogers, uma garçonete fria e manipuladora por quem Philip se apaixona. Apesar do tratamento indiferente e muitas vezes cruel que ela dispensa a ele, Philip não consegue se libertar de seu amor obsessivo por ela. Esta relação serve como fio condutor da narrativa, destacando as vulnerabilidades de Philip e as complexidades da escravidão humana – tanto emocional como psicológica.

A profundidade do livro é porque retrata a jornada de Philip em sua busca para se compreender e encontrar seu lugar no mundo. Através de suas diversas buscas e fracassos, ele aprende valiosas lições de vida que contribuem para seu crescimento pessoal e do leitor também.

Como o próprio título sugere – Escravidão Humana – é sobre as várias formas de escravidão que Philip experimenta – emocional, física e social, especialmente em seu relacionamento com Mildred, que exemplifica a escravidão emocional, onde ele fica preso por seu amor obsessivo, apesar de saber que é destrutivo. Apesar dos numerosos contratempos e tristezas, a resiliência de Philip brilha, e, à medida que ele aprende a aceitar suas imperfeições e a encontrar contentamento em uma vida simples e significativa, ele alcança a tão elusiva felicidade. E é justamente essa a mensagem final: a verdadeira felicidade vem de dentro e é frequentemente encontrada nos prazeres simples da vida, numa existência modesta e normal, o oposto do caminho de Mildred.

Uma das passagens mais comoventes do romance ocorre quando Philip reflete sobre suas experiências e percebe a futilidade de suas obsessões e ambições: “Ele sempre viveu no futuro, e o presente sempre, sempre escorregou por entre seus dedos. Seu ideal era uma miragem que ele perseguia, mas que sempre esteve fora de alcance.” Parece um pouco a mensagem de O Grande Gatsby também, na referência da luz verde. Só que Somerset Maugham veio antes que F. Scott Fitzgerald.

E se Philip Carey é o herói do livro, Mildred Rogers é a personagem feminina central, muitas vezes descrita como uma figura ambígua, cujo caráter duvidoso é essencial para o desenvolvimento do protagonista.

Parte dos defeitos de Mildred vão de encontro com uma visão machista sobre o comportamento feminino, que a contrasta com outras mulheres doces, atenciosas e até submissas enquanto ela é descrita como fria e indiferente, sem demonstrar muito afeto ou compaixão, ou seja, é uma figura difícil de se relacionar. Sua frieza emocional é ainda mais evidente em suas interações com Philip, que muitas vezes se sente frustrado e magoado por sua falta de reciprocidade.

Mildred tem uma tendência a manipular as pessoas ao seu redor para conseguir o que quer, por isso usa a afeição de Philip para obter benefícios materiais e emocionais, sem realmente se comprometer com ele de maneira significativa e provocando muita dor na vida dele.

Porém, apesar de sua aparente frieza e manipulação, Mildred também é uma personagem insegura e dependente, que busca validação e segurança através de seus relacionamentos, muitas vezes se envolvendo com homens que podem lhe proporcionar um estilo de vida melhor. Sua insegurança é uma das razões pelas quais ela é incapaz de se comprometer verdadeiramente com Philip

Narcisista, Mildred tem um impacto destrutivo na vida de Philip e parece muitas vezes ser deliberadamente, mas é mais complexo que isso. Sua relação com ele é marcada por altos e baixos emocionais, onde ela frequentemente o deixa em um estado de desespero com sua incapacidade de amar ou ser amada de forma saudável. Essa toxicidade contribui tanto para o sofrimento de Philip como para a sua própria ruína. Não era comum, pelo menos há 90 anos, a proposta de uma mulher tão difícil como Mildred como sua figura feminina principal, especialmente tratada tridimensionalmente, com falhas e vulnerabilidades que a tornam efetivamente humana. Embora ela seja muitas vezes vista como antagonista, sua complexidade permite que os leitores vejam além de suas ações superficiais e compreendam as motivações subjacentes.

    No cinema, Lesley Howard capta perfeitamente tanto a angústia pessoal de Philip como sua decadência emocional, mas é Bette Davis – destemida e inesquecível – que abraça uma personagem perigosa para qualquer atriz na época. Ela não tem receio de ser má, de ser sexy, de ser golpista e ainda mais de aparecer feia e destruída quando a tragédia finalmente alcança a personagem.

    A atriz persuadiu o diretor John Cromwell a fazer com Mildred fosse apresentada ao seu jeito, dando à Bette o controle criativo sobre o comportamento e a aparência da personagem. De forma inovadora, ela insistiu em fazer a própria maquiagem, estragando sua beleza com delineador borrado e base suada, ficando assustadora. Ela sabia que Mildred daria a ela uma oportunidade de se mostrar como Atriz, não uma estrela, e criar uma reputação que viraria lendária e, quanto mais o público odiava ou sentia nojo de Mildred, mais amava Bette Davis.

    A campanha pela indicação ao Oscar, na época ainda sem esse nome, faz parte da História de Hollywood e até hoje, 90 anos depois, impactada por ela, com regras implementadas para evitar a repetição do que ia acontecer com Bette, algumas delas até hoje em vigor (como ter uma empresa para auditar os votos).

    No final das contas, Bette praticamente ‘roubou’ o filme para ela e sua interpretação é moderna até hoje.Seu sorriso de escárnio e a postura arrogante de uma mulher sem classe são inebriantes e ela está absolutamente magnética quando entra em cena. É absolutamente fascinante, mesmo que o sotaque inglês, mais ainda, cockney, seja pífio. As inconsistências que alguns historiadores e críticos apontam sobre seu trabalho no filme são também citadas como os sinais da grande Diva que estava apenas dando os primeiros passos nas telas.

    Por tudo isso e mais um pouco, fica a dica de ler o livro e checar o filme. É uma aula de cinema, literatura e comportamento humano. Imperdível.


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