Tarde Demais: os 75 anos de um clássico

Em 1947, a atriz Olivia de Havilland ficou maravilhada com a peça A Herdeira, ficando determinada a levá-la para o cinema. Ela brigou para que a Paramount comprasse os direitos e contratasse William Wyler para dirigi-la. Deu certo. Dois anos depois ela ganhou o seu segundo Oscar de Melhor Atriz com o filme Tarde Demais.

A Herdeira (vou chamar assim embora o filme no Brasil tenha mudado o título) é uma adaptação do livro de Henry James, Washington Square. O livro, que é um dos mais populares do escritor, é um dos que ele mesmo não gostava. Inspirado em uma história real, foi lançado para fechar a trilogia das herdeiras: Daisy Miller, O Retrato de uma Mulher e Washington Square retratam a complexa realidade feminina do século 19, onde precisavam de maridos para sobreviver e, se tivesse a sorte de terem fortuna, precisavam estar atentas à golpistas atrás do dinheiro. Um mundo masculino difícil e tóxico.

Como as demais heroínas, Catherine Slope é uma herdeira, mas diferentemente das demais não é nem bonita ou inteligente, vivendo uma relação edipiniana e patológica com seu pai. Se nas páginas ela sofre para ter o amor paterno na mente do autor ela era a melhor coisa de toda história. Aliás, a única.

A adaptação do livro para os palcos já simplificou uma trama aparentemente sem reviravoltas e fez enorme sucesso com Wendy Hiller como Catherine e Basil Rathbone como Dr. Sloper.

A história gira em torno da ‘sem graça’ Catherine (De Havilland), filha única do milionário médico (Ralph Richardson, que fez o papel em Londres) que a rejeita porque sua esposa morreu no parto. Sempre tentando agradá-lo, sem conseguir, ela tem 17 anos e começa a ser cortejada por um rapaz muito bonito, Morris Towsend (no filme, Montgomery Clitf), mas que Dr. Slope considera apenas um interesseiro.

Para testá-lo, o pai de Catherine impõe várias restrições e até distanciamento, mas ela parece estar completamente apaixonada (e ele, embora um tanto incerto, se mantém firme). Quando finalmente coloca o teste final na mesa que demanda a prova de amor acima da matéria (para se casar com Morris, será deserdada), Morris recua, tornando Catherine uma mulher rancorosa e cínica.

Anos depois, já sem o pai vivo, Morris volta a cortejá-la, mas, como o título-spoiler brasileiro explica: é tarde demais.

O filme é espetacular até hoje, mesmo 75 anos depois. Os detalhes de câmera e interpretação são tão significativos que influenciam diretamente um dos maiores estudiosos do cinema, ninguém menos do que Martin Scorcese.

O diretor se inspirou em Tarde Demais quando fez A Época da Inocência (claro!) e recentemente, Assassinos da Lua das Flores. “Eu tinha cerca de oito anos, e foi uma experiência muito, muito poderosa. Meu pai me levou ao cinema e [nós] assistimos”, Scorcese compartilhou em uma entrevista. Ele espelhou o casal principal do seu filme em Morris Townsend (Montgomery Clift) e Catherine Sloper (Olivia de Havilland).

“O que é interessante é, no final das contas, como Catherine toma sua decisão no final do filme… A questão é: ele [Morris] realmente a quer, ou ele quer o dinheiro dela? Essa é a chave”, ele argumenta.

Scorcese também aprecia a sutileza de como Wyler mostrou que toda fortuna dos Slopers na verdade eram uma prisão para eles. E ele traça outro paralelo com seu filme, comparando as decisões das personagens femininas. “[Catherine] faz o que faz. Agora, no final das contas, se ela está certa ou errada — em outras palavras, se ela o lê corretamente ou incorretamente — não é importante. Ela faz essa mudança. Ela se torna forte. Como ela diz ao pai: ‘Eu tenho bons professores porque você me disse como não amar.’ Foi muito poderoso. Eu sempre senti que Morris, o personagem interpretado por Clift, quando ele voltou, eu não acho que ele a amava. E Leo (DiCaprio) disse: “Bem, e se ele amasse?”” – explicou. “Até Lily Gladstone tem a aparência de Olivia de Havilland. Não há dúvida. Ela realmente parece assim. Catherine é muito forte e não desiste naquele momento. Acho que Mollie é a pessoa mais forte neste filme, interpretada por Lily. No final das contas, ela toma uma decisão. É [sobre] até onde o amor vai, sabe? E ela segura e segura e segura até decidir”, conclui ele.

Os paralelos seguem. Montgomery Clift, sempre perfeccionista, foi escolhido por William Wyler no lugar de Erroll Flynn justamente porque o diretor sabia que Clift traria a ambivalência necessária para o papel. O ator não gostou de sua atuação, mas podemos discordar dele, né?

E Leonardo Dicaprio é outro fã. Ele estou os trabalhos de Clift em Tarde Demais (The Heiress) e também Um lugar Ao Sol, onde também é um conto de um homem ambicioso que se casa por dinheiro. Para criar Ernest, Dicaprio mesclou as duas atuações.

Voltando ao clássico de 1949, para William Wyler a tensão sufocante da casa era “tão emocionante quanto um tiroteio, e possivelmente mais emocionante” e comparou a trama a “ataques de guerra doméstica gentil, mas contundente”. Conhecido justamente por saber explorar a humanidade em ambientes parados, mas tóxicos, críticos consideram que ele captou o drama das tiranias domésticas com perfeição. Afinal, Wyler é o mestre das “batalhas armadas” psicológicas entre personagens.

Do lado pessoal, biógrafos dos da atriz e do diretor também traçam paralelos. Olivia, que já tinha um Oscar e era uma estrela rompeu com a Warner para ter maior liberdade artística. Nos anos 1940s isso demandava grande ousadia. E Wyler também tinha saído da MGM e criado sua própria produtora. Contar a história de uma pessoa reprimida e anulada encontrando força interior para se formar como uma pessoa independente era perfeita para ambos. E Olivia queria mesmo trabalhar com ele, que já era considerado um dos melhores diretores de todos os tempos.

Há longos estudos de como Wyler nos comunica as mudanças de Catherine ao longo da história. Desde não conseguir se admirar no espelho no início até que se dirige ao pai olhando para ele através do reflexo, assim como sua assinatura, a subida dramática da escada no final, quando a cada degrau ela se sente mais empoderada.

A escada aliás, rende várias lendas de bastidores. Olivia, que era bonita, sofreu para interpretar a sem-graça Catherine Slope, abusada e manipulada por todos por boa parte da história. Wyler a fez gravar a cena em que sobre arrasada depois de ser abandonada por mais de 30 vezes, mandando encher a mala de livros para ficar mais pesada a cada take. (Claro que estrela e diretor brigaram) , entre outros detalhes.

Uma das decisões mais elogiadas do filme foi trazer Ralph Richardson para repetir o papel que foi dele na montagem londrina. Suas inflexões irônicas, suas pausas e pequenos gestos são gigantescos para manipular e destruir a confiança de Catherine. Ele não é mau ou cruel porque quer vê-la sofrendo, ele se irrita e sofre porque percebe nela uma vulnerabilidade perigosa. Até que ela rebate, como boa aluna que foi dele.

A personagem que ainda não mencionei, a tia intrometida e tola Lavinia, interpretada por Miriam Hopkins, que se projeta na sobrinha e a incentiva a se comportar como a heroína de uma história de amor, o que não poderia estar mais distante da realidade, como Sloper vê.

Uma “verdade” de bastidores que funcionou nas telas foi o fato de que Montgomery Clift não admirava Olivia de Havilland, tinha problemas com todo mundo, mas conseguiu dois feitos: um, sendo bonito e adorado, não era um antagonista óbvio. E o segundo, não era exatamente doce com seu interesse romântico.

No final das contas, Tarde Demais (The Heiress) consegue se manter moderno mesmo quando o feminismo mudou tantas convenções. Hoje Catherine é tida como um exemplo de uma mulher que se desvincula da expectativa machista e toma decisões por si só, enfrentando os que a subestimavam. Sem ilusões românticas, mas dona de si. Nos anos 40 foi vista como uma mulher vingativa e fria, que destrói os homens que a fizeram tão infeliz. Claramente bem longe do que Henry James pensou quando a criou ainda no final dos anos 1800s.

Tarde Demais (The Heiress) foi indicado a quatro Oscars, ganhou quatro. Permanece como um dos melhores dramas dos anos de ouro de Hollywood e sem dúvida, um dos meus favoritos.

Houve uma refilmagem em 1997, dirigida por Agnieszka Holland e com Jennifer Jason Leigh, Albert Finney, Maggie Smith e Ben Chaplin no elenco, mas não teve o mesmo impacto que a obra de William Wyler. Igualmente, em 2012, Jessica Chastain estrelou uma remontagem na Broadway, mas o que todos lembram mesmo é de Tarde Demais (The Heiress). Um dos clássicos inesquecíveis mesmo.


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1 comentário Adicione o seu

  1. Brilliant piece on a very powerful film. The performances are phenomenal. Ralph Richardson’s portrayal of the odious father always lingers in my memory after a viewing.

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