A Verdadeira Marquesa de Merteuil: Poder, Máscaras e Vingança

A Marquesa de Merteuil é uma das personagens mais poderosas já criadas pela literatura — e também uma das mais mal interpretadas. Desde que Pierre Choderlos de Laclos publicou Les Liaisons Dangereuses em 1782, críticos e leitores tentam decifrar quem ela é, de onde vem, o que a move. Em mais de dois séculos, ela foi descrita como vilã, vítima, feminista, diabólica, libertina, fria, apaixonada. Nenhum desses rótulos dá conta do que Laclos realmente escreveu. A “verdadeira Merteuil” é uma mulher que nasce da inteligência e do cálculo, não do trauma. É uma mente livre aprisionada num corpo feminino, e é precisamente esse o escândalo do livro.

Falo isso porque tivemos a peça Ligações Perigosas, o filme de mesmo nome, assim como Valmont e, depois, a tentativa frustrada de mostrá-la na juventude (Ligações Perigosas, 2022) e, agora, A Sedução (originalmente anunciado como Merteuil). As liberdades criativas sobre quem é Merteuil me preocupam porque o foco na sensualidade da personagem a reduz à eterna mulher vingativa — e Merteuil sempre foi muito mais do que isso. Ela era moderna e ousada, mesmo dois séculos e meio depois.

A inteligência como vingança

No livro, o passado da Marquesa nunca é narrado de forma linear. Ele emerge, como quase tudo em Ligações Perigosas, através das cartas. É na famosa carta 81 que ela, pela primeira vez, fala de si. Escrevendo ao Visconde de Valmont, seu cúmplice e rival, Merteuil revela o segredo que sustenta sua reputação: tudo nela é estudado.

Criada por uma tia severa, numa educação rígida, ela aprendeu cedo que as mulheres eram treinadas para obedecer, agradar e se calar. Enquanto o mundo acreditava vê-la dócil, ela estava aprendendo o contrário — a ler gestos, silêncios, fraquezas, e a usar a máscara que lhe impuseram como arma. “Nasci para vingar meu sexo e dominar o vosso”, escreve. Essa é talvez uma das frases mais radicais já escritas por uma mulher fictícia no século 18. Ela não quer piedade, quer poder. E o alcança pela única via possível: a dissimulação.

A Arte de Fingir: A Máscara Como Arma

Merteuil descobre que o controle é liberdade. Casa-se sem amor, mas transforma o casamento em escudo: enquanto o marido vive na ilusão de uma esposa virtuosa, ela observa e calcula. Quando se torna viúva, percebe que a viuvez é a maior das libertações. O título de “viúva respeitável” é o disfarce perfeito.

“Decidi viver de modo que todos me julgassem incapaz de errar, e, no entanto, de modo que nada me fosse proibido”, escreve. Essa frase define não apenas sua filosofia, mas o mecanismo de sobrevivência de tantas mulheres de seu tempo — e do nosso. Ela não precisa de um passado trágico, de um homem que a tenha ferido, de uma infância miserável. O trauma de Merteuil é o próprio sistema patriarcal, e o modo que ela encontra de resistir é se tornando melhor no jogo que inventaram para dominá-la.

Merteuil e Valmont: Unidos, Nunca Iguais

Ao contrário de Valmont, que joga por vaidade e prazer, Merteuil joga por controle e respeito. Ele é o libertino clássico — o homem que se diverte manipulando emoções — enquanto ela é uma estrategista que entende o poder da linguagem e da aparência. Ele precisa de plateia; ela precisa de segredo. É por isso que a relação entre os dois é uma guerra disfarçada de aliança. Eles se entendem porque falam a mesma língua do cinismo e da sedução, mas nunca são iguais. Valmont é impulsivo, busca glória; Merteuil é racional, busca domínio. Quando ele se apaixona e se perde, ela se mantém fiel ao seu próprio código: não se deixar capturar nem pelo amor, nem pela culpa.

A destruição de Merteuil no final do livro — a doença, o escândalo, a ruína — é menos um castigo moral do que uma necessidade narrativa. Laclos, mesmo iluminista, ainda escreve dentro das convenções do seu tempo. Uma mulher tão lúcida, inteligente e livre não podia sobreviver impune. Mas sua queda não anula seu triunfo. Até o último momento, Merteuil se recusa a confessar, a pedir perdão, a ser reduzida. É punida por aquilo que mais ofende: a independência intelectual e sexual.

Com o passar dos séculos, essa personagem virou um desafio para quem tenta adaptá-la. O cinema e a televisão, em geral, não suportam a ideia de uma mulher que não “se explica”. Assim, as versões modernas tentam justificar Merteuil com histórias de origem, traumas ou romances.

Na adaptação de Stephen Frears (1988), a interpretação magistral de Glenn Close dá à personagem uma dimensão quase trágica: ela é uma mulher que amou Valmont e foi traída. O texto sugere que toda sua frieza vem do ressentimento. É brilhante, mas é uma traição a Laclos. A Merteuil original nunca amou Valmont. Ela o admira como rival e despreza sua fraqueza quando ele se deixa dominar por sentimentos. Valmont, de Milos Forman, com Annette Bening, seguiu a mesma convenção, alterando o final e se afastando drasticamente do livro original.

As “Atualizações” Modernas: Quando Tentam Explicar Merteuil

A série da Starz (2022) vai ainda mais longe, transformando Merteuil numa mulher de origem humilde que ascende pela manipulação — uma espécie de anti-heroína contemporânea moldada por injustiças sociais. É uma narrativa eficiente, mas elimina a essência do personagem: Merteuil não é produto da miséria, é produto do privilégio e da lucidez. Ela é o espelho do próprio sistema que subverte.

Já a versão francesa da Netflix (2022), Les Liaisons Dangereuses, transforma Valmont e Merteuil em adolescentes de escola, Célène e Tristan, em uma releitura de Euphoria com perfume de moralismo. Lá, o poder nasce da dor emocional, não da inteligência. A Merteuil original jamais precisou ser ferida para se tornar perigosa.

Em geral há outras limitações repetidas:

Essas distorções se repetem também na forma como a trama costuma ser contada:

No livro, na peça e nos filmes de 1988, a história começa com uma Marquesa de Merteuil ofendida por um ex-amante, o Conde de Gercourt, que a deixou para se casar com uma jovem virgem, Cécile Volanges. Por isso, ela convoca outro ex-amante, o Visconde de Valmont, um libertino, para que ele seduza Cécile antes do casamento, humilhando Gercourt. O problema é que Valmont está mais interessado em romper a paz de espírito e a fidelidade da virtuosa Madame de Tourvel, o que novamente enfurece Merteuil. Afinal, ela, que é uma grande amante, bela e inteligente, “perde” para mulheres apagadas e obedientes. Ao provocar Valmont, ela quer, assim como Gercourt, destruí-los em seus próprios jogos. E consegue.

A Marquesa de Merteuil nunca diz que amou Valmont em Les Liaisons Dangereuses. Em nenhum momento das 175 cartas, Laclos a faz expressar amor, ciúme romântico ou desejo afetivo por ele. O que há entre os dois é admiração intelectual, rivalidade, cumplicidade e vaidade, mas nunca sentimento amoroso. O equívoco nasce das adaptações — principalmente a de Stephen Frears (1988), com Glenn Close e John Malkovich — que transformam o jogo entre os dois em uma história de paixão reprimida. Essa leitura é cinematograficamente sedutora, mas não existe no texto de Laclos — e acabou contaminando todas as versões seguintes.

Outro erro recorrente: Merteuil era órfã, mas Pierre Choderlos de Laclos nunca sugere que a personagem venha de origem humilde; ao contrário, tudo indica que ela pertence à nobreza francesa, criada com a educação e os costumes da elite do século XVIII. Tanto na série da Starz (que inclusive a coloca em um prostíbulo antes de se casar com o Marquês de Merteuil) quanto em A Sedução, da HBO, vemos uma jovem inexperiente e treinada para ser praticamente uma cortesã. Nada poderia ser mais distante do que o livro descrevia — e chocava por isso.

A sociedade francesa lidava com cortesãs de maneira dúbia: elas eram toleradas e abertamente identificadas como tal. A surpresa de Ligações Perigosas é justamente porque Merteuil era uma nobre de aparência ilibada, mas, na verdade, experiente sexualmente e apreciadora do sexo sem compromisso. Ela sempre viveu no meio da aristocracia, recebendo a educação típica de uma mulher de posição: instrução religiosa, etiqueta, música, dança e silêncio. E — por trás — era uma libertina.

Por fim, desde o filme de 1988, todas as versões querem encontrar uma mentora para Merteuil, de alguma forma espelhando o que mais tarde ela faz com Cécile. Bobagem. No livro, ela fala de uma “velha tia” que a criou — uma figura anônima, e não Madame de Rosemonde, que é tia de Valmont. Mas, em A Sedução, será justamente Rosemonde, interpretada por Diane Kruger, quem treinará Merteuil na arte de conquistar os homens.

E o maior problema dessa revisão é justamente porque Madame de Rosemonde representa o oposto da Marquesa de Merteuil. Ela é gentil, honesta, lúcida e, dentro da medida de sua época, a voz moral do romance. Apesar de amar o sobrinho, ela percebe o vazio e a perversidade dele, e chega a lamentar a influência que Merteuil exerce sobre ele.

Rosemonde também é a confidente da Madame de Tourvel — é a ela que Tourvel escreve quando se desespera entre o desejo e o dever. Por isso, a tia funciona como ponte entre o mundo moral e o imoral do romance: ela é o espaço de refúgio e redenção que os libertinos fingem respeitar, mas profanam. É o que resta de um mundo pré-revolucionário de valores, um eco da França anterior à decadência moral da aristocracia.

Valmont usa a tia como escudo de respeitabilidade — ele escreve suas cartas do castelo dela e aproveita a confiança e inocência da velha senhora para manipular as circunstâncias. Ou seja: Rosemonde é o álibi de Valmont. Ele sabe que, perto dela, ninguém desconfiará de suas intenções.

Ao inverter os valores morais (e até a personalidade) de Rosemonde, a nova adaptação comete um anacronismo no estilo do que vimos em The Buccaneers — uma escolha lamentável.

O Escândalo da Lucidez

Todas essas versões tentam resolver o “problema” que Laclos propôs e nunca quis responder: o que acontece quando uma mulher é mais racional, mais fria, mais estratégica que os homens que a cercam? O século 18 só pôde punir essa mulher. O século 21 ainda tenta explicá-la, como se a autonomia feminina precisasse de justificativa emocional. Laclos, no entanto, criou Merteuil não para ser compreendida, mas para ser temida. Ela é o produto lógico de uma sociedade hipócrita: um monstro que nasce da lucidez. O verdadeiro escândalo não é o que ela faz, mas o que ela pensa.

Merteuil é o Iluminismo às avessas. Enquanto os filósofos escrevem sobre liberdade e igualdade, ela pratica ambas às escondidas, entre lençóis e cartas. É uma mulher que pensa com a cabeça e age com o corpo, e isso, em 1782, era insuportável. Ao final, quando a máscara cai, o mundo a destrói não por seus crimes — e sim porque ela ousou viver como um homem, sem pedir desculpas.

A Mulher Que Fingiu Para Existir

É por isso que, mesmo punida, ela permanece invencível na memória. Nenhuma versão moderna conseguiu capturar o que Laclos capturou: o poder que nasce do pensamento, o desejo que nasce da observação, a ironia de uma mulher que aprendeu a fingir para existir e acabou se tornando mais verdadeira que todos os que a julgavam.

Essa é a verdadeira Marquesa de Merteuil — não a amante traída, nem a vítima da sociedade, mas a arquiteta do próprio destino. Uma mulher que transformou a submissão em estratégia, o silêncio em linguagem e a aparência em arma. Em vez de ser lembrada pelo que destrói, ela deveria ser lembrada pelo que revela: a hipocrisia de um mundo que ainda teme mulheres que pensam.


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