Já desisti de disfarçar minha adoração por The Cure há muitas décadas. E ele nunca me deu motivos para deixar de ser fã. Passeando mais uma vez por sua discografia, fiz esse novo corte. Afinal, poucos letristas na história da música popular levaram a literatura tão a sério quanto Robert Smith. Desde o início da banda, ele transformou livros em canções, personagens em metáforas e sentimentos em capítulos.
O universo do The Cure — melancólico, introspectivo, às vezes assustador — nasce do mesmo lugar que o dos grandes autores que o influenciaram: a solidão, a identidade fragmentada, a inevitável passagem do tempo.
Smith sempre foi um leitor voraz. E, ao longo das décadas, suas letras revelam uma biblioteca particular feita de Camus, Kafka, Baudelaire, Penelope Farmer, Mervyn Peake, Conrad, Carroll, Proust e até Orwell. São referências diretas — não “ecos”, não alusões — mas livros lidos, vividos e transformados em som.

Vamos à playlist que mais parece um passeio em sua biblioteca?
“Killing an Arab” (1978) — Camus à beira-mar
A primeira incursão literária de Smith veio logo no início, no primeiro single da banda.
Killing an Arab nasceu da leitura de O Estrangeiro, de Albert Camus.
“Standing on the beach with a gun in my hand…”
A letra descreve, palavra por palavra, a cena em que Meursault mata o homem na praia — o gesto sem emoção que define o existencialismo de Camus.
Robert sempre defendeu a canção como uma meditação sobre o absurdo e o isolamento, e não como provocação política.
Hoje, ela é apresentada nos shows como Killing Another, mas a essência permanece: a indiferença como forma de desespero.
“Charlotte Sometimes” (1981) — a menina presa no tempo
Inspirada no livro homônimo de Penelope Farmer, Charlotte Sometimes é uma das mais fiéis adaptações literárias já feitas em forma de canção.
Smith leu o romance sobre a menina que viaja no tempo e troca de corpo com outra estudante, e ficou obcecado pela ideia de perder a própria identidade. O clipe, filmado em uma escola vitoriana, ecoa o tom do livro, e a letra cita diretamente o último parágrafo da obra:
“Charlotte sometimes / crying for herself / and the others.”
É o The Cure no auge da delicadeza sombria: infância, memória e solidão se misturam como sonho e déjà vu.

“The Drowning Man” (1981) — o trágico destino de Fuchsia Groan
Ainda em Faith, Smith mergulhou na trilogia Gormenghast, de Mervyn Peake, uma das obras góticas mais ricas do século 20.
“She stands twelve feet above the flood…”
A canção é inspirada na personagem Fuchsia Groan, cujo suicídio simboliza o colapso do castelo e da imaginação.
Smith chegou a dizer que Peake foi mais importante para ele do que Tolkien — e The Drowning Man soa como uma elegia medieval feita de ecos, lamentos e paredes úmidas.
“The Hanging Garden” (1982) — o apocalipse de Conrad
A selva em fúria, os animais em pânico, o colapso da moral — The Hanging Garden foi inspirada, segundo Smith contou à NME, por leituras de Joseph Conrad, especialmente O Coração das Trevas.
Há também tons bíblicos, de Apocalipse e punição, mas o núcleo da música é o mesmo de Conrad: a natureza refletindo a insanidade humana.

“Cold” (1982) — Proust e Peake no gelo
Na mesma época, Smith alternava leituras de Mervyn Peake e Marcel Proust, e disso nasceu Cold, talvez uma das faixas mais desesperadas do The Cure.
“It’s about loss of self. The decay of everything you once thought was stable.”
É o tempo como prisão, o amor como lembrança em decomposição — a versão gótica de Em Busca do Tempo Perdido.
“Piggy in the Mirror” (1984) — Carroll e o reflexo distorcido
No álbum The Top, Smith olha para o espelho e vê o que Lewis Carroll já havia descrito em Through the Looking-Glass: um eu distorcido, líquido, impossível de definir.
“It’s about self-hatred — looking in the mirror and not recognizing yourself.”
A figura do espelho é central na literatura e na psique de Smith: ver-se como outro, odiar-se como reflexo.
“How Beautiful You Are” (1987) — Baudelaire em Paris
Diretamente adaptada de The Eyes of the Poor, de Charles Baudelaire, a música reproduz a narrativa original quase integralmente.
“You want to know why I hate you? Well, I’ll try and explain…”
No conto, um casal observa uma família pobre pela vitrine de um café; o narrador sente piedade, mas a companheira, desprezo.
Smith transforma esse instante literário em um dos retratos mais cruéis do amor e da alienação social — puro Spleen de Paris.

“At Night” (1980) — Kafka e o labirinto invisível
Smith sempre citou Franz Kafka como uma de suas influências diretas.
At Night, do álbum Seventeen Seconds, é um retrato sonoro de O Castelo ou O Processo: a culpa sem causa, o medo sem rosto, a busca sem saída.
“It’s about fear and guilt you can’t define — pure Kafka,” disse ele em 1980.
“Alone” (2023) — Dowson, Camus e o fim de todas as canções
Quando Robert Smith abre Alone com “This is the end of every song that we sing”, ele está citando o poema “Dregs”, de Ernest Dowson (1899).
“This is the end of every song man sings” — carrega a mesma melancolia que percorre toda a canção.
Dowson, um poeta decadentista do fim do século 19, escreveu sobre desencanto, perda e amor exaurido, descrevendo a vida como taça quase vazia, restando apenas os sedimentos amargos — os “dregs”.
Smith transforma essa referência num lamento existencial: o fim de todas as canções como metáfora do fim da própria arte, do tempo e da voz.
Dowson morreu tragicamente aos 32 anos, vítima de tuberculose, após uma vida marcada por miséria e desilusão. Em Alone, Smith faz ecoar essa mesma sensação de finitude — uma espécie de elegia romântica atravessada pelo desencanto moderno, algo entre o pessimismo poético de Dowson e o absurdo filosófico de Camus.
Não há revolta, apenas a aceitação: “tudo termina, até a canção”.
A biblioteca invisível de Robert Smith
Entre Camus e Baudelaire, Peake e Carroll, Robert Smith construiu uma obra que lê o mundo através da melancolia. O The Cure é, há mais de quatro décadas, uma banda literária: cada música é um conto, cada álbum, um romance.
Se há um fio invisível unindo Faith a Disintegration e Songs of a Lost World, é esse — o diálogo constante entre a dor humana e as palavras que tentam descrevê-la.
“Books saved me,” disse Smith certa vez. “They gave me words for feelings I didn’t know how to name.”
E talvez seja isso o que o The Cure faz desde o começo: nomear o inominável — com guitarra, poesia e silêncio.
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Curioso como Smith costura suas referências nas letras das músicas. Uma pena o filme do The Cure não ter vindo pro Recife. Pelo menos até agora não chegou a pré-venda como em outros estados. As esperanças são poucas. Como ele mesmo diz em Endsong: “No hopes, no dreams, no world.”
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Não sei se eles voltam em turnê pelo país, mas parece estarão no Rock in Rio
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