A Reinvenção de Robin Hood: Realismo e Política na Nova Série

A lenda de Robin Hood nunca desaparece completamente — apenas muda de forma. Desde o século 15, quando a balada A Lyttle Geste of Robyn Hode entrou para o imaginário britânico, o mito do homem que rouba dos ricos para dar aos pobres tem sido recontado inúmeras vezes, adaptado para refletir o espírito de cada época. Em 2025, a MGM+ apresenta uma nova versão que, ao invés de fugir do passado, decide encará-lo de frente. Robin Hood é uma série que busca o realismo histórico, a densidade emocional e o peso político de uma Inglaterra em reconstrução — e o faz com uma ambição que mistura a brutalidade de Vikings, a introspecção de Peaky Blinders e a estrutura épica de Batman Begins.

Dirigida por Jonathan English e criada por John Glenn, a série nasce declaradamente inspirada no universo de Christopher Nolan. Glenn, em entrevista ao ComicBook, explicou que a equipe queria criar um mundo que parecesse possível, não uma fantasia de capa e espada. “Somos grandes fãs de Nolan e Batman Begins. A maneira como ele constrói um universo crível, no qual você sente que realmente poderia viver, foi o que quisemos reproduzir.” Essa escolha define o tom de Robin Hood: uma origem de herói construída com carne, sangue e dúvida — onde a lenda nasce da sobrevivência, e não da glória.

A história se passa em 1186, duas décadas após a invasão normanda que redefiniu a Inglaterra. Os saxões, povo conquistado, foram privados de suas terras, fé e dignidade. A série abre com um menino ouvindo histórias antigas sobre deuses pagãos e impérios perdidos — uma semente do passado que o tempo tentará apagar. Esse menino crescerá como Rob Locksley (Jack Patten), o homem que o mundo chamará de Robin Hood: um camponês saxão que, após uma perda devastadora, se volta contra o sistema que o oprimiu. Ao contrário das versões mais romantizadas, aqui Robin não é um galante aventureiro. Ele é um sobrevivente. Um homem que luta para recuperar o que foi roubado — o território, o nome, o sentido de pertencimento.

O que torna essa releitura tão distinta é o modo como ela aborda a política da soberania. Glenn e English usam o mito para discutir o direito à terra e à identidade, apresentando Robin como um radical — não apenas para o seu tempo, mas também para o nosso. A lenda ganha uma dimensão histórica e social raramente explorada, retratando o impacto direto da conquista normanda sobre o povo saxão e o modo como a fé cristã foi imposta para legitimar o poder. É uma reflexão sobre dominação, cultura e memória — temas que fazem de Robin Hood um drama político tanto quanto uma aventura.

A série se expande além da Floresta de Sherwood, retratando a Inglaterra medieval com amplitude inédita. A MGM+ descreve o projeto como uma “tapeçaria de realismo histórico e relevância moderna”, que inclui locações no Vaticano, no Palácio de Westminster e nas cortes da Europa. As filmagens aconteceram na Sérvia, onde as paisagens densas e florestas ainda intocadas ajudaram a recriar a atmosfera do século XII. O resultado é um cenário de textura palpável, sujo, autêntico — em tudo o oposto das produções limpas e idealizadas de outrora.

Mas o que mais chama atenção é o papel das mulheres. Maid Marian (Lauren McQueen) é apresentada como filha de um lorde normando — um detalhe que transforma o romance com Robin em algo trágico e politicamente impossível. Ela não é coadjuvante nem musa: é uma mulher dividida entre dois mundos, cuja história ganha autonomia e propósito próprio. Já Eleanor da Aquitânia (Connie Nielsen) aparece como uma força monumental. Libertada após dezesseis anos de prisão, a rainha retorna à corte com a frieza de quem aprendeu a sobreviver dentro das estruturas de poder masculino. Ela manipula aliados, protege os filhos — Ricardo Coração de Leão e João Sem Terra — e impõe sua autoridade com a serenidade de quem já foi subjugada e venceu.

Entre essas duas figuras, surge Priscilla (Lydia Peckham), filha do xerife de Nottingham (Sean Bean). Criada perto do poder, ela usa o charme e a inteligência para manipular homens e preservar sua posição. Há nela uma energia quase mística, que a crítica americana associou a Morgana Le Fay — um toque de realismo mágico que, mesmo discreto, dá à série uma camada simbólica fascinante. Priscilla é um dos destaques da produção, tanto por seu contraste com Marian quanto por representar a ambiguidade feminina em um mundo que só entende o poder através da força.

E se Sean Bean parece feito sob medida para o papel de xerife de Nottingham, o mérito é que aqui ele não é tratado como vilão unidimensional. Bean interpreta um homem dividido entre a função pública e o amor pela filha — um antagonista humano, cheio de contradições. O confronto entre ele e Robin, portanto, é mais moral do que físico: é o embate entre a lei e a consciência.

Ainda que Robin Hood seja uma série de ação, é nos momentos de intimidade que ela se torna mais poderosa. O grupo dos Merry MenLittle John (Marcus Fraser), Friar Tuck (Angus Castle-Doughty), Ralph Miller (Erica Ford), Henry (Mihailo Lazić) e Drew (Matija Gredić) — é retratado como uma comunidade de sobreviventes, um refúgio de afetos em meio à guerra. Suas cenas são as mais sinceras e vivas da temporada, capturando o espírito original da lenda: a descoberta da força coletiva. É nesse núcleo que o herói encontra sua humanidade, e o espectador, sua conexão emocional.

Visualmente, a série é uma conquista. O diretor de fotografia Ivan Kostić transforma cada frame noturno em pintura: os rostos iluminados por velas, o brilho dos metais, os reflexos do fogo — tudo construído com uma sensibilidade quase pictórica. A trilha sonora, composta por Federico Jusid, complementa a atmosfera com cordas intensas e melancólicas, reforçando a dimensão espiritual do enredo. À noite, o mundo de Robin Hood brilha com realismo e mistério; de dia, revela sua aridez — uma escolha estética que simboliza a luta entre luz e sombra que move o protagonista.

Mas, apesar da beleza visual e da riqueza temática, Robin Hood nem sempre encontra o equilíbrio entre intimidade e escala épica. Quando tenta expandir demais seu universo — numa clara tentativa de competir com Game of Thrones —, perde ritmo e emoção. O excesso de subtramas e a formalidade das relações amorosas tornam alguns episódios menos envolventes. O que começa como uma história de origem sólida se dispersa ao tentar ser o novo grande épico medieval do streaming. Ainda assim, os momentos em que a série se volta ao essencial — ao gesto de Robin, ao companheirismo, à esperança — são de uma força genuína e inesquecível.

Críticos americanos compararam a série a um “drama sem magia”, mas com consciência — um comentário justo. Robin Hood da MGM+ talvez não reinvente o formato, mas devolve à lenda a seriedade e o peso moral que ela merece. O herói aqui não é um símbolo de perfeição, e sim de resistência. Ele erra, duvida, perde — mas continua lutando, porque a injustiça é o verdadeiro inimigo.

Para a MGM+, o projeto é mais que uma aposta isolada. São dez episódios nessa estreia e os produtores já confirmaram planos para várias temporadas. Depois de Billy the Kid, o canal parece ter encontrado seu novo épico histórico. E, se o primeiro ano é o alicerce, há espaço para que as próximas temporadas aprofundem os dilemas espirituais e sociais que tornam essa história tão perene.

Ao final, o que mais impressiona é a coragem de voltar às origens sem ceder à nostalgia. Robin Hood é sobre o passado, mas fala do presente — de desigualdade, fé e revolta. É uma série que entende que os mitos sobrevivem porque continuam a nos perguntar de que lado da história escolhemos ficar.

E nesta nova versão, o fora da lei que sempre roubou dos ricos devolve a nós algo que andava em falta: a lembrança de que a justiça é uma escolha — e que, às vezes, o heroísmo nasce do desespero.


Descubra mais sobre

Assine para receber nossas notícias mais recentes por e-mail.

Deixe um comentário