Kate Bush e Stranger Things: quando Running Up That Hill virou legado

Em 2022 eu escrevi, sem exageros que “Kate Bush é genial.” E não era força de expressão. Era constatação íntima de quem a ouvia muito antes de algoritmos, trends e virais.

“Sou fã alucinada por ela desde pequena. Running Up That Hill foi minha música mais tocada no Spotify em 2019, e, na verdade, ano atrás de ano”, está no meu texto. Aí veio Stranger Things. E o mundo inteiro descobriu aquilo que alguns de nós já sabíamos há décadas. Quatro, para ser exata (ela foi lançada em 1985).

Running Up That Hill não apenas voltou às paradas em 2022: ela se tornou eixo emocional da série.

Ela entrou na trilha sonora da série – que já era cheia de hits dos anos 1980s sendo bem aplicados – quando a popular personagem Max Mayfield (Sadie Sink) tentava lidar não apenas com as dores provocadas pelo mundo de Upside Down em seus amigos, mas porque Vectra literalmente usurpou o corpo de seu irmão, Billie, e o matou.

Na volta às aulas, a canção virou trilha de trauma, culpa, luto e, principalmente, de uma vontade desesperada de continuar viva da personagem. Os números só confirmaram o que já estava claro no imaginário: crescimento explosivo de streams, a música chegando a 1 bilhão de execuções em 2023, dominando TikTok, playlists, charts.

Agora, em 2025, algo ainda mais raro acontece. Com a estreia da quinta e última temporada, a música retorna em vários episódios e vive um segundo pico massivo de escuta. Running Up That Hill ultrapassou 1,5 bilhão de streams no Spotify, voltou ao Top 150 global e subiu de novo no iTunes, puxada diretamente pela despedida de Hawkins. Não é mais um revival. É consagração.

Antes de Hawkins: o “primeiro resgate” com o Placebo

Mas é importante lembrar que, muito antes de Vecna, já havia quem estivesse correndo morro acima em 2003.

Naquele ano, o Placebo lançou sua versão de Running Up That Hill no álbum Covers, mais lenta, sombria, com guitarras no lugar dos sintetizadores, clima quase minimalista e a voz de Brian Molko em falsete arrastado. Essa leitura se tornou, para muita gente, o cover definitivo da canção nos anos 2000, a ponto de críticos a descreverem como uma atualização “reluzente” e angustiada da original, com um baixo em pulsação de batimento cardíaco.

O cover de Placebo ganhou vida própria na cultura pop: apareceu em séries como The O.C., The Vampire Diaries, Bones, CSI: Crime Scene Investigation e NCIS: Los Angeles, quase sempre em cenas de clímax emocional, montagens melancólicas, despedidas e viradas dramáticas. Para toda uma geração que cresceu com esses seriados, Running Up That Hill era, antes de mais nada, “a música do Placebo”.

O próprio Molko já contou que sugeriu a faixa à banda justamente por ser um dos grandes amores musicais da juventude, e que a ideia era desacelerar o tempo da canção sem deixá-la arrastada demais, mantendo-a eletrônica, mas com texturas dos anos 2000. Ele também falou da emoção de ouvir, da boca da própria Kate, que ela gostava da versão, um tipo de “benção” que consolidou esse cover na história da música recente.

Ou seja: antes de Stranger Things, já havia um “primeiro resgate” de Running Up That Hill na cultura pop, e o Placebo foi fundamental para manter a canção circulando entre adolescentes dos anos 2000, especialmente via TV.

O que muda com Stranger Things: de trilha de clima a dispositivo narrativo

A diferença é que, nas séries em que o Placebo brilhou, a música funcionava principalmente como comentário emocional: aquela faixa perfeita que acompanha um beijo impossível, uma separação, uma reviravolta. É poderosa, mas ainda está na camada do clima.

Stranger Things faz outra coisa.

Ao escolher a versão original de Kate Bush e amarrá-la à história de Max, os irmãos Duffer transformam Running Up That Hill em elemento narrativo central, não só em “música de cena”. A canção é apresentada como a favorita da personagem, o fio emocional que a ancora ao mundo dos vivos. É por ser a música do coração dela que se torna a arma contra Vecna: é o som que a puxa de volta quando tudo parece perdido.

Em termos dramáticos, Running Up That Hill deixa de ser apenas trilha e vira ferramenta de sobrevivência. Na quarta temporada, é a canção que literalmente salva Max. Na quinta, com o desfecho se aproximando, volta como possível chave para tirá-la do coma — um eco direto daquela primeira cena icônica, agora carregado de memória, culpa e esperança.

É aí que reside o salto de escala. Se Placebo ajudou a manter a canção viva, reintroduzindo Running Up That Hill para a geração dos anos 2000 e fincando a música em séries importantes, Stranger Things eleva tudo a outro patamar ao fazer da canção um eixo de enredo, um símbolo interno da narrativa, um dispositivo de vida ou morte.

Do texto de 2022 ao legado de 2025

Quando escrevi sobre Kate Bush em 2022, meu foco era a artista: “Seu álbum de estreia, aos 19 anos, The Kick Inside, é um dos mais influentes para grandes estrelas femininas da música… Controle artístico sempre foi essencial para ela.” E sobre a potência política e emocional de A Deal with God: “É uma prece de uma mulher que queria fazer um acordo com Deus para trocar de lugar com um homem.”

Hoje, esse texto ganha mais um capítulo. Kate Bush não é apenas uma compositora genial do passado. É uma criadora que continua agindo no presente, lançando coletâneas, dirigindo curta, protestando contra o uso irresponsável de IA na música, inspirando artistas visuais, vendo sua obra atravessar séries, gerações e plataformas.

E Running Up That Hill deixa de ser só “a música que voltou” para se tornar um dos grandes hinos emocionais audiovisuais dos últimos 40 anos, com duas ondas fundamentais: o cover do Placebo, que acendeu de novo a chama nos anos 2000, e Stranger Things, que transformou essa chama em incêndio global.

Em 2022, eu escrevia como fã. Em 2025, escrevo como testemunha de um legado completo.


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