Nem todo consumidor acompanha os bastidores do que vê nas telas, mas o “lado negócio” da Arte sempre foi tão fascinante quanto – e, muitas vezes, até mais intrigante do que – a própria ficção que vende. Trabalhei como executiva do entretenimento por muitos anos, em paralelo à minha carreira como jornalista, e testemunhei pessoalmente negociações, tensões e momentos decisivos que moldaram o que vemos, como vemos e onde vemos. Sempre achei esse universo irresistível.
Hoje, observo tudo com um interesse mais leve, quase doméstico, pensando como consumidora e isso, admito, é um alívio. Mas, a cada anúncio de fusão, venda ou reorganização, uma parte de mim ainda se angustia pelos amigos que continuam nesse mercado. Para eles, essas notícias nunca significam apenas mudanças de cadeiras: são rearranjos que definem carreiras, identidades criativas e, muitas vezes, a própria sobrevivência profissional. Nada disso é simples. Nada é superficial.
E, na última década, Hollywood atravessa a transformação mais profunda desde sua fundação. Estamos vendo estúdios centenários, pressionados pela dívida ou pela perda de relevância, sendo comprados justamente pelas empresas que os tiraram do centro do poder. É uma inversão histórica de forças. O capítulo mais recente – e ainda em aberto – é a possível compra da Warner pela Netflix. Na minha avaliação, é o terremoto mais significativo da indústria em mais de cem anos.

A entrada da Netflix em negociação exclusiva para adquirir a divisão de estúdios e streaming da Warner Bros. Discovery não é apenas uma manchete econômica: é um daqueles momentos que sintetizam um século inteiro de história do audiovisual em um único lance. De um lado, o estúdio que celebrou seu centenário em 2023, um dos pilares da Hollywood clássica. Do outro, a empresa que começou enviando DVDs pelo correio e, em menos de trinta anos, transformou-se na maior plataforma global de entretenimento. Há aí um simbolismo quase cinematográfico: o fim de uma era e o início de outra, radicalmente diferente.
A Warner não chega a esse ponto por casualidade. A compra da Time Warner pela AT&T, em 2018, foi uma aposta grandiosa que imaginava um futuro em que telecomunicações e conteúdo andassem de mãos dadas. Não andaram. Em 2021, a AT&T desmontou o arranjo e articulou uma fusão entre WarnerMedia e Discovery. Nascia, em 2022, a Warner Bros. Discovery, já sufocada por quarenta bilhões de dólares em dívidas e por uma estratégia híbrida difícil de executar. Reorganizações, cancelamentos, orçamentos comprimidos, decisões intempestivas e a tentativa mal-sucedida de dissolver a marca HBO dentro do genérico “Max” corroeram a identidade do grupo. Em 2025, o recuo veio quase como um pedido de desculpas: o retorno do nome HBO Max.
Enquanto isso, o mercado se consolidava em escala global. Disney comprou a Fox, Amazon incorporou a MGM, a Paramount se uniu à Skydance. A paisagem de Hollywood deixou de ser definida pelos estúdios clássicos e passou a ser desenhada por gigantes tecnológicos. Nesse novo mapa, a Netflix surge não apenas como competidora, mas como reorganizadora do tabuleiro.
Sua proposta para comprar a divisão de streaming e estúdios da Warner é mais do que aquisição: é uma afirmação de poder. A Netflix quer o catálogo que moldou a cultura pop que inclui entre outros Harry Potter, Batman, Mulher-Maravilha, Game of Thrones, Succession, The Last of Us, Matrix. Quer os estúdios físicos, as operações internacionais, o prestígio da HBO. Quer, enfim, o elemento que sempre lhe faltou: pedigree. Se a fusão se concretizar, ela não será mais “apenas” uma plataforma; será um conglomerado de entretenimento de fato, com a envergadura que os velhos estúdios desfrutaram por décadas.






Embora ainda falte a assinatura final, o negócio está avançado. As etapas previstas incluem a formalização do acordo – esperada para acontecer entre janeiro e março de 2026 – seguida das aprovações internas e de acionistas, que costumam levar de um a três meses. Depois disso, vem a fase mais longa e delicada: a avaliação regulatória nos Estados Unidos e na Europa, que pode demorar de seis meses a um ano. Se tudo correr como previsto, o negócio deve ser concluído entre o final de 2026 e o início de 2027.
Mas, e se não fechar? A Netflix aceitou pagar um reverse break fee de aproximadamente cinco bilhões de dólares caso os reguladores bloqueiem a aquisição. Essa “multa invertida”, em que é o comprador, não o vendedor, que indeniza o fracasso, é tão alta que quase funciona como uma garantia pública. Mas, se o negócio ruir, a Warner retorna ao mercado fragilizada, ainda com dívida pesada e concorrentes atentos. Já a Netflix sofre um prejuízo significativo, mas não fatal. Para a Warner, seria um trauma. Para a Netflix, um arranhão caro. No mercado, o sentimento é que o “se” já não é mais o ponto central; discute-se apenas o “quando”.
E há ainda uma camada essencial nesta história: a sucessão de executivos que marcaram a HBO e a Warner e cujas trajetórias são parte desse rearranjo. Richard Plepler, o homem que comandou a “era Game of Thrones”, deixou a HBO com a chegada da AT&T e seguiu para um acordo de exclusividade com a Apple TV+. Jason Kilar, CEO da WarnerMedia durante a aposta ambiciosa de lançar filmes simultaneamente nos cinemas e na HBO Max, saiu no momento da fusão com a Discovery e hoje atua como conselheiro no setor de tecnologia. Ann Sarnoff, primeira mulher a presidir a Warner Bros., deixou o cargo quando David Zaslav assumiu o comando. Toby Emmerich, líder da Warner Bros. Pictures, migrou para sua própria produtora. Casey Bloys, talvez o último dos grandes chefes criativos remanescentes, mantém a tocha da HBO acesa e, ironicamente, pode vir a liderar a marca mais prestigiada da Netflix se a fusão for concluída.
Esse choque de mundos – HBO e Netflix – costuma ser resumido como a disputa entre “arte” e “algoritmo”. É tentador simplificar, mas injusto com ambos os lados. É verdade que a HBO se construiu sobre curadoria, rigor autoral e tempo de maturação. Também é verdade que a Netflix revolucionou o consumo a partir de dados, padrões de retenção e métricas globais. Mas nenhuma das duas é puramente uma coisa ou outra. A HBO recusou projetos que depois se tornaram fenômenos e Stranger Things talvez seja o caso mais famoso. Os irmãos Duffer foram rejeitados em diversos estúdios, incluindo modelos de curadoria tradicional, antes de encontrarem acolhimento na Netflix. E ali, naquele momento, não havia algoritmo nenhum garantindo sucesso: era mais um salto de fé do que um cálculo matemático.



Se falamos tanto sobre algoritmos é porque, hoje, eles estruturam e aceleram decisões. Mas a verdade é que o audiovisual sempre se apoiou em números. A bilheteria é matemática pura. A audiência televisiva, por décadas tratada como absoluta, era tudo menos precisa: baseada em amostras pequenas, aparelhos instalados em lares que não representavam o país inteiro, extrapolações ousadas. Não era menos “cinzenta” do que os modelos de hoje, só era vendida como infalível. O que muda não é o fato numérico, mas a lógica. Antes, havia margem para intuição, afeto, defesa pessoal de um executivo. Agora, o desvio – aquilo que não se comporta como esperado – tende a ser eliminado em nome da eficiência.
Mas seria ingênuo ignorar que, para além do impacto criativo, existe um problema estrutural que está provocando arrepios em Hollywood e em Washington: a concentração excessiva de poder. A possível fusão entre Netflix e Warner não é apenas mais um capítulo da consolidação; ela ampliaria o alcance da Netflix de um modo inédito, combinando o maior streaming do mundo com um dos últimos catálogos independentes de peso. Isso acende alertas antitruste claros. O que preocupa agentes, diretores, roteiristas e executivos não é apenas a diluição cultural, é o risco de que um único player controle janelas de exibição, cadeias de produção, talentos, preços e bibliotecas centenárias. Hollywood, historicamente, sobreviveu por causa da pluralidade: estúdios diferentes financiando riscos diferentes, criando movimentos artísticos que só existiram porque ninguém dominava tudo.
E a resistência já começou. Discretamente, criadores influentes têm manifestado preocupação de que uma fusão desse porte “algeme” o mercado de cinema, diminuindo o número de filmes produzidos e limitando a concorrência, exatamente como ocorreu após a aquisição da Fox pela Disney, que reduziu drasticamente o volume de lançamentos no cinema. Reguladores dos EUA e da União Europeia já sinalizam que irão analisar o acordo com lupa, e figuras políticas de ambos os partidos – de republicanos como Mike Lee a democratas influentes – já demonstram desconforto com o efeito dessa fusão no ecossistema cultural, no preço ao consumidor e no acesso do público a narrativas diversas. A compra tem sua lógica industrial, mas não será recebida de forma pacífica. Hollywood não teme mudanças, teme hegemonias. E essa fusão, para muitos, parece grande demais para não ser questionada.
Mas talvez o nervo mais exposto de toda essa história não seja nem o streaming, nem o catálogo, nem o antitrust: é o cinema enquanto espaço físico. A simples possibilidade de a Netflix assumir um dos estúdios que mais abasteceram salas ao longo de um século acendeu um alerta profundo entre exibidores, diretores e distribuidores. Ted Sarandos, afinal, nunca fez segredo: para ele, a vida de um filme no cinema pode — e deve — ser mínima. A Netflix nunca acreditou na sala escura como etapa essencial do ciclo de uma obra, mas como um ritual a ser cumprido quase por obrigação, para acalmar criadores ou atender às regras do Oscar. E, embora os últimos anos tenham mostrado uma aproximação tímida com o circuito exibidor, ninguém no mercado acredita que esse seja um compromisso ideológico; é, no máximo, estratégico. Para a indústria cinematográfica, que já enfrenta janelas reduzidas, encarecimento operacional, crise de público e escassez de lançamentos desde a fusão Disney–Fox, a entrada da Netflix no comando do catálogo da Warner soa como a ameaça definitiva: e se um dos últimos estúdios capazes de manter o ecossistema das salas for absorvido por uma empresa que não vê valor intrínseco no cinema como lugar? É esse medo — quase existencial — que explica a reação aflita de cineastas, sindicatos e donos de redes de exibição. Não é nostalgia: é sobrevivência.
E, ainda assim, há algo luminoso no horizonte. A Netflix não pensa o mundo a partir de Los Angeles. O olhar dela é global. Suas decisões se baseiam em dados reais de São Paulo, Cidade do México, Seul, Lagos, Mumbai, Istambul. Se ela assumir a Warner e a HBO, aquilo que funciona no Brasil pode ter o mesmo peso do que funciona na Califórnia ou mais. Isso abre portas para narrativas verdadeiramente transnacionais, para franquias que nascem fora do eixo EUA–Europa, para um deslocamento profundo do centro criativo da cultura pop. Hollywood nunca fez isso por iniciativa própria. As plataformas, sim, porque dependem do mundo, não de um único mercado.

É claro que esse cenário traz riscos igualmente profundos. Super catálogos concentram poder, achatam a competição e estreitam possibilidades criativas. Regiões como a nossa podem ganhar visibilidade global e, ao mesmo tempo, perder autonomia local. Fusões desse porte sempre trazem cortes, centralizações e reorganizações que, quase sempre, começam pelas bordas pelos escritórios internacionais.
Ao final, a possível aquisição da Warner pela Netflix não é apenas uma grande compra. É uma mudança de eixo. É a despedida de um modelo que dominou o século 20 e a chegada de uma criatura híbrida – parte estúdio, parte plataforma, parte tecnologia, parte curadoria – que deve definir o século 21. É a empresa de 28 anos prestes a assumir o estúdio de mais de 100. É o algoritmo se encontrando com a tradição.
E, assim, a pergunta que resta – e que nos acompanhará pelos próximos anos – é simples e gigantesca: que histórias sobreviverão quando o algoritmo for, de fato, o novo estúdio? E quem decidirá quais histórias merecem existir em um mundo guiado por dados globais?
Estamos assistindo, em tempo real, ao capítulo mais radical da transformação do audiovisual desde a própria invenção de Hollywood. Não é fascinante?
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