Repost da matéria de Julho de 2025 em homenagem aos 250 anos de Jane Austen
As protagonistas de Jane Austen não são heroínas comuns. Não são idealizadas nem pela aparência, nem pelo comportamento. Não nascem com o destino já traçado para o casamento ideal. Não obedecem ao modelo da mulher que sofre em silêncio ou que é premiada por sua beleza celestial. Elas erram, julgam mal, amam na hora errada, confiam em quem não deviam, hesitam, duvidam, amadurecem. E, talvez por tudo isso, seguem fascinando leitores e leitoras dois séculos depois.
Cada uma dessas personagens traz em si a delicadeza e a firmeza com que Austen costurava suas histórias: mulheres que vivem em uma sociedade onde pouco lhes é permitido, mas que, mesmo assim, tentam exercer alguma forma de escolha. Mesmo que essa escolha seja não se casar com o homem certo no papel. Mesmo que signifique anos de espera, de solidão, de observação constante. Mesmo que ninguém à sua volta perceba a força do que estão fazendo.


O caso mais emblemático é, claro, o de Elizabeth Bennet, provavelmente a mais célebre entre todas, em Orgulho e Preconceito. Elizabeth é inteligente, espirituosa e ousada dentro dos limites do possível. Acha graça de tudo o que está ao seu redor e não esconde suas opiniões — mesmo quando isso a faz parecer inadequada. É por isso que Darcy, o homem mais orgulhoso do livro, se encanta por ela. Não porque ela seja a mais bonita ou a mais dócil, mas porque, sem querer agradar, Elizabeth mostra que não está à venda.
Mas há outras figuras igualmente marcantes. Anne Elliot, em Persuasão, é talvez a mais dolorosa. A mulher que já teve a chance de amar e foi convencida a desistir. Que envelhece antes da hora. Que passa anos em silêncio, apagada, diminuída — até que reencontra o homem que perdeu e, mais do que isso, reencontra a si mesma. A transformação de Anne não acontece com grandes gestos, mas com pequenas reafirmações de dignidade. Austen parece dizer: até mesmo o amor pode voltar, se você ainda souber quem é.



Emma Woodhouse, por sua vez, começa onde muitas gostariam de terminar: rica, bonita, respeitada. Mas é a mais errática, a mais inconsequente, a que mais erra. E, talvez por isso, seja também uma das mais humanas. Sua arrogância vai sendo desconstruída pouco a pouco, até que ela finalmente enxerga as pessoas à sua volta. Austen a critica com doçura, mas não a abandona. Há algo de muito generoso em permitir que Emma amadureça — sem puni-la por ter começado com poder.
Austen constrói essas mulheres com realismo moral, e não com idealização romântica. Quando há beleza física, ela é moderada. Quando há riqueza, ela é acompanhada de armadilhas. Quando há amor, ele precisa ser testado. Marianne Dashwood é bonita, romântica e apaixonada. Mas é justamente essa entrega sem reservas que a leva à doença, à desilusão, à renúncia. Seu final é muitas vezes interpretado como resignação: casar-se com um homem bom, mas que ela não ama como amou Willoughby. Mas também pode ser lido como maturidade: aceitar um amor tranquilo depois do furacão.


Já Fanny Price, a heroína de Mansfield Park, é a mais rejeitada — tanto pelos personagens da história quanto por muitos leitores. Fanny é frágil, introspectiva, submissa. Mas dentro dela há uma firmeza que nenhum outro personagem ali tem. Quando todos acham que ela deveria aceitar Henry Crawford, ela recusa. Não porque esteja presa a convenções, mas porque enxerga algo que os outros não veem: que charme e mudança de comportamento não significam caráter. Austen a recompensa com um final feliz, ainda que discreto — e deixa claro que a força moral, mesmo silenciosa, pode vencer.
Não é coincidência que essas heroínas tenham mais semelhanças do que diferenças. Nenhuma delas tem plena autonomia. Todas enfrentam limitações impostas por classe, dinheiro, parentes, reputação. Mas todas, à sua maneira, escolhem não trair a si mesmas. Algumas demoram mais para crescer, como Emma. Outras carregam desde cedo um senso de justiça e equilíbrio, como Elinor Dashwood, que se cala para proteger a família, mas nunca deixa de sentir. Catherine Morland, de A Abadia de Northanger, é a mais leve, quase cômica — uma jovem impressionável, que acredita estar dentro de um romance gótico. Mas também ela aprende: a distinguir fantasia de realidade, e a confiar na própria percepção.

Entre os homens, Austen também oferece contrastes reveladores. Há os que crescem junto com as heroínas — Darcy, Knightley, Wentworth — e os que apenas fingem ser encantadores, como Wickham, Willoughby e Henry Crawford. Os primeiros aprendem com seus erros e demonstram respeito pelas mulheres com quem se relacionam. Os segundos apenas as usam como espelho ou troféu. É significativo que, nos finais felizes, o amor só se concretize quando o homem reconhece o valor moral e intelectual da mulher — não antes. Austen parece exigir esse reconhecimento como condição para o amor verdadeiro.
Essa exigência é, na verdade, uma das formas mais claras pelas quais Austen defende suas protagonistas. Mesmo quando aponta falhas ou ingenuidades, ela nunca as ridiculariza. Permite que errem, mas também que aprendam. Permite que sonhem, mas também que se decepcionem. E nunca as condena por desejar. O desejo, para Austen, não é pecado — o que ela critica é a falta de reflexão, o egoísmo, o autoengano.


Muita gente já tentou identificar o quanto da própria Jane Austen existe nessas mulheres. Sabemos que Austen nunca se casou, embora tenha amado. Sabemos que foi uma mulher espirituosa, observadora, cercada por irmãos e pela irmã Cassandra, com quem tinha uma relação profunda. Sabemos que sua situação financeira era instável, que vivia à sombra de figuras masculinas e que, mesmo assim, escreveu livros que desafiam os papéis impostos às mulheres de seu tempo. Tudo isso está nas heroínas. Cada uma delas parece carregar um pedaço do que Austen viveu ou desejou viver. Mas nenhuma delas é exatamente Austen — talvez porque ela tenha preferido viver em todas elas ao mesmo tempo.
Ao final de cada romance, o que fica não é a beleza das personagens, nem seus casamentos. O que permanece é a jornada de crescimento, o direito à escolha, a vitória da integridade em um mundo que tantas vezes premiava apenas a aparência ou a fortuna. Austen não oferece heroínas perfeitas — e é exatamente por isso que elas continuam tão reais.
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