O Reino das Sombras é a cena que leva uns nove minutos, com 32 bailarinas de branco em fila, uma a uma, descendo uma rampa em arabesques perfeitos e sincronizados, parte de uma visão (literalmente!) provocada pelo ópio. São dois passos para frente, arabesque em plié, seguido de um port de bras, tendu e de novo. É pura poesia que cria uma ilusão de 3D sensacionais. Há 144 anos encanta os fãs de balé clássico. Uma das obras de arte de Marius Petipa que ainda é dançada como o coreógrafo criou, em 1877.


“La Bayadère é um dos maiores, se não o maior, trabalho clássico na história do ballet … Poeticamente inigualável é insuperável no repertório clássico”, disse Mikhail Baryshnikov em sua biografia (a cena abre o filme Momento de Decisão, por acaso).
Os temas dos ballets, nos anos inicias do ballet, eram frequentemente “exóticos” e La Bayadère checa todas as caixinhas. A trágica história de Nikiya, dançarina do templo traída pelo grande amor de sua vida e assassinada pela noiva enciumada dele, é contada em 4 atos e 7 quadros. Foi um dos maiores sucessos de Petipa mas que só foi redescoberto no oeste depois da Guerra Fria, nos anos 1960s. E mais ainda, apenas o trecho do Reino das Sombras era apresentado até que Natalia Makarova recuperou a obra completa. Mas estamos nos adiantando.

Petipa criou La Bayadère para a estrela do Imperial Ballet da época, Ekaterina Vazem. Nem tudo foi tranquilo nos bastidores entre a estrela e o coreógrafo, com muitas discussões entre eles, assim como entre Petipa e os cenógrafos, com o diretor de teatro… climão! Mas foi um enorme sucesso, claro.

Ludwig Minkus estava especialmente inspirado quando compôs a música do ballet. Sabemos como Petipa era específico quanto ao tempo e andamento das partituras, mas, as melodias, são exclusivas do talento do compositor. E faz toda diferença para ressaltar ainda mais a entrada das bayadères e a beleza de o Reino das Sombras, que funciona quase como um balé sinfônico, como décadas mais tarde Georges Balanchine se fez Deus. Petipa criou desenhos de grupo e de solistas como poucos. Já tinha ensaiado em O Corsário e Don Quixote, mas se superou aqui. Em seguida A Bela Adormecida e O Quebra Nozes também trouxe trechos em que é o conjunto que se destaca, mas de novo, nada como La Bayadère.
A base da versão dançada hoje é em cima da revisão de 1941 do Ballet Kirov. La Bayadère ficou “presa” na União Soviética. A primeira versão do Reino das Sombras fora da cortina de ferro foi a do Balé do Teatro Municipal do Rio de Janeiro, em abril de 1961, produzida por Eugenia Feodorova e estrelada por Bertha Rosanova. No mesmo ano, na turnê do Kirov Ballet pela Europa apresentou sua versão em Paris, tirando o fôlego da platéia.

O jovem Rudolf Nureyev era a estrela da apresentação e foi o mesmo Nureyev que remontou o Reino das Sombras para dançar com Margot Fonteyn e o Royal Ballet, em 1963. Ficou para sempre como uma das apresentações assinatura dos dois.

Depois de ter montado o Reino das Sombras em 1974, seis anos depois, Natalia Makarova montou o balé completo para o American Ballet Theatre.

Ela mesma dançou o papel de Nikiya no 1º ato, mas foi substituída por Marianna Tcherkassky na mesma noite. (Que noite!) O elenco incluía Anthony Dowell e Cynthia Harvey também.
A versão de Makarova ainda faz parte do acervo do ABT. Em 1989, com princesa Diana na platéia, a bailarina russa liderou a montagem da obra no Royal Ballet, que também a mantém em sua programação desde então.


Pouco antes de sua morte, trinta anos após sua fuga para o oeste, Nureyev deixou sua versão completa para La Bayadère. É uma das mais luxuosas já feitas da obra. Muito debilitado, ele se envolveu em cada detalhe da montagem. Fez questão de estar com os bailarinos na noite de estréia, mas já não conseguia mais andar. Foi sua despedida dos palcos.


Três meses depois, morria. O elenco escolhido por ele, Isabelle Guérin, Laurent Hilaire e Elizabeth Platel estão na versão filmada do balé. Muito emocionante imaginar que ele fez questão de se despedir no mesmo palco que virou estrela internacional com o balé que era sua assinatura.

Reveja a entrada das bayadères na versão de Nureyev
E do Kirov
O corpo de baile do Royal Ballet ensaiando