A guerra dos roteiristas em E O Vento Levou, revista 84 anos depois

Há alguns anos que um dos maiores clássicos feitos no cinema passou a ter problemas sérios no contexto atual. E O Vento Levou, o filme que romaceia um sul dos Estados Unidos escravagista e “saudoso”, não conseguiu mais se sustentar como um filme de história de amor cujo cenário era a Guerra Civil americana. É uma obra que não está mais resistindo a prova do tempo, mesmo sendo ainda um fenômeno 84 anos depois de ter sido lançado. Até entender apenas o mínimo do que é racismo estrutural eu amava a história de Scarlett O’Hara, os figurinos e a gradiosidade do filme. Hoje me sinto mal, incomodada a cada cena, ainda mais porque li o livro e sei que nem metade dos horrores da cultura escravagista chegou às telas. Complexo.

Por que estou falando isso? Porque aparentemente o historiador David Vincent Kimel localizou alguns rascunhos do roteiro original do filme onde as cenas onde endereçariam os problemas raciais foram cortados, reavivando a discussão. Uma das discussões é a de que “higienizaram a escravidão” na versão final, “negando os horrores da escravidão, bem como seus legados de desigualdade racial. ” É verdade porque era um período ainda de segregação racial, não apenas no sul. A atriz Hattie McDaniel, que ganhou o Oscar de Coadjuvante, não teve permissão de entrar na festa – só fizeram exceção para subir no palco – apenas por ser negra. Isso em 1939, quase 74 anos depois da Guerra Civil americana. Ainda para piorar, o termo com a palavra N era dito abertamente, portanto tanto no livro como no roteiro, aparecem. Como disse, difícil.

Reencontrar os roteiros originais é uma parte interessante de toca essa pesquisa. O romance de Margaret Mitchell, ela mesma uma sulista branca, foi escrito em 1936 e vendeu quase 30 milhões de cópias, era uma febre na época. Tinha 1037 páginas e já foi criticado desde o início como deturpando a visão nacional da escravidão. Para Margaret, e para Hollywood, a Guerra Civil Americana era apenas o “pano de fundo de uma história de amor”, portanto não tinha o compromisso de se aprofundar na questão. Uma armadilha que apenas se lembrarmos – de novo – como o racismo estrutural foi se espalhando é que fica claro o grande problema do livro.

E O Vento Levou, o filme, gerou muitas lendas sobre seus bastidores, tão conflitante quanto a briga entre Norte e Sul. E sim, começou justamente nos roteiros. Apesar do crédito do roteiro final ser de Sidney Howard, vários escritores trabalharam na adaptação do romance para as telas, nada menos do que pelo menos seis oficiais (Incluindo o produtor, David O. Selznick) e outros que incluem até o escritor F. Scott Fitzgerald. Para Selznick, há uma “quantidade comparativamente pequena de material na imagem que não é do livro, a maior parte é minha pessoalmente” e que ele e Sidney Howard escreveram a maior parte dos diálogos originais, aceitando inclusões de Ben Hecht John Van Druten. “Duvido que haja dez palavras originais de [Oliver] Garrett em todo o roteiro”, Selznick disse em uma entrevista “Quanto à construção, isso é cerca de oitenta por cento de minha autoria, e o resto dividido entre Jo Swerling e Sidney Howard, com Hecht tendo contribuído materialmente para a construção de uma sequência.”



Mas o que o historiador descobriu, depois de pagar 15 mil dólares pela cópia original de uma das versões do roteiro – com mais de 300 páginas – é que o conflito entre os roteristas era ainda maior. O documento, que deveria ter sido destruído, pertencia ao diretor de elenco, Fred Schuessler e inclui cenas que foram cortadas e observações feitas a mão pelos roteiristas que se desentenderam sobre como o racismo deveria ser retratado no filme. “Grande parte do material extirpado era um retrato severo dos maus-tratos aos trabalhadores escravizados na plantação de Scarlett, incluindo referências a espancamentos, ameaças de expulsar [a empregada negra] ‘Mammy’ da plantação por não trabalhar duro o suficiente, e outras representações de violência física e emocional,” ele escreveu.

Scarlett O’Hara (Vivien Leigh) é uma mulher detestável, no livro ainda mais do que no cinema. Narcisista, sociopata e até cruel, é uma sobrevivente, mas não tem empatia com ninguém. Como o exemplo de uma mulher que se impõe ao patriarcado ela efetivamente funciona, mas nos ombros de causas muito sérias. Para Scarlett, ter sido recusada pelo homem que amava, Ashley Wilkes (Leslie Howard) foi o estopim para uma série de escolhas impulsivas e destrutivas, arruinando a felicidade das pessoas desde que ela conseguisse se manter viva e com dinheiro. No final ela é “punida” por perder o único homem que a amou como era, Rhett Butler, mas ela não se arrepende de nada do que fez.

Na sala dos escritores, Kimel descobriu, houve uma divisão entre ‘Românticos’ e ‘Realistas’, ou seja, os que queriam retratar as cenas de maus-tratos para destacar a brutalidade de Scarlett e condenar a escravidão e os que, como o produtor,Selznick, queriam fazer um filme sobre “o velho sul”, romanceando como pessoas de princípios, lealdade e cavalheirismo. Na nota escrita por Selznick podemos ler: “Gostaria de ver uma montagem de dois ou três minutos das mais belas tomadas pré-guerra que se possa imaginar… gostaria de ver… n cantando”, escreveu. “Então poderíamos entrar na história do amor decepcionado, traindo capatazes, n trabalhando duro e garotas brigando.” Ou seja, ele conseguiu porque foi assim que E o Vento Levou foi vendido e consumido por mais de 80 anos.

Os escritores Sidney Howard Oliver H.P. Garrett são apontados por Kimel como os líderes dos roteiristas “realistas” e se você se pergunta, Fitzgerald era a favor dos românticos, mesmo sem ficar muito tempo na equipe. Mas mesmo sendo creditado como autor sozinho, muito do realismo que Sidney Howard quis incluir foi eliminado. “Seu material que retratava as relações raciais era tão corajoso e intransigente que parte dele foi cortado em rascunhos antes mesmo da criação do roteiro em minha posse”, afirmou Kimel.

Talvez inadvertidamente algumas pessoas julguem que Scarlett fosse a “mocinha” da história, no conceito de ser uma boa pessoa. Scarlett O’Hara sempre foi antiheroi, sempre foi “vilã”. O que nos encanta é sua ganância pela vida, mas no filme ela foi bem aliviada. Nos livros, maltrata os escravizados sem jamais questionar suas atitudes. Aliás, um de seus maridos é um dos fundadores de uma associação que é a Ku Klux Klan em tudo menos o nome. Sim, sua relação com alguns escravizados como Mammie e Pork tem momentos mais afetivos, mas com Prissie ela é cruel sem arrependimento. Algumas cenas em que Kimel cita terem sido cortadas, ela amaldiçoa Mammie quando ela “expressa arrependimento por ter que se envolver em trabalhos forçados nos dias difíceis após a Guerra Civil” – o que ficou no filme foi Scarlett dando um tapa na irmã Suellen quando ela se queixa de ter que ajudar a colher algodão – e em outra, Scarlett diz: “Não sei e não me importo!” em resposta à questão de onde os trabalhadores ex-escravizados deveriam ir e no filme a vemos aceitando que os prisioneiros de guerra sejam chicoteados para trabalhar porque eles são “mais baratos”. Quem viu isso e achou que Scarllett O’Hara era mocinha?

Na pesquisa do historiador, encontrou uma correspondência entre Selznick e o assessor de imprensa, Val Lewton, onde discutem o uso da palavra n no filme – desde que fosse proferida por membros negros do elenco, mas Lewton alertou ao produtor que seria negativo entrar de qualquer forma. Pelo menos isso foi excluído.

O resultado é que E O Vento Levou não é apagado, mas é considerado um clássico com ressalvas. Possivelmente, aos poucos, será apagado. Se tivesse aproveitado a oportunidade para tratar com seriedade um tema tão profundo, teria maior longevidade.

Aqui o link para o artigo na MARIE CLAIRE.

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