Metropolis: ainda moderno 96 anos depois

Antes mesmo do cinema ganhar som, na Alemanha de 1927 foi lançado o primeiro filme ainda creditado como primeira menção de Inteligência Artificial no mundo. Isso mesmo, a genial e impecável obra dirigida por Fritz Lang, Metropolis. O filme é a adaptação de um livro escrito por sua esposa, Thea Gabriele von Harbou, e até hoje rende estudo e referências em vários campos além da Arte.

A trama descreve um futuro sombrio onde um inventor obcecado com uma jovem constrói o andróide HEL para enganar os trabalhadores oprimidos e tomar o poder em Metrópolis. Profundo em sua análise da complexidade da industrialização, as várias camadas psicológicas que constroem (e destroem) as almas humanas e sim, o perigo do mau uso da tecnologia foram transportados visual com um brilhantismo assustador pelo diretor, com imagens futuristas que se comprovaram reais com o avanço dos anos, onde prédios altos, máquinas grandes, transporte avançado e robôs semelhantes a humanos eram uma realidade. Sem surpresa Metropolis ainda é a maior referência para qualquer obra de ficção científica, seja Blade Runner, Tron, Raised by Wolves ou The Matrix.

Metropolis, pelo bem e pelo mal, também plantou o tom de desconfiança e negatividade com que a tecnologia é retratada, o que é uma reação natural diante das possibilidades e das mudanças de todo avanço econômico e tecnológico traz. Porém, na figura do cientista obcecado pelo Poder e a falta de “controle” sobre a máquina ficaram como um conto perigoso. Por exemplo, é HEL, a humanóide que promove a revolução social incitando o caos. Em um mundo que testemunhava o bloco soviético após a sangrenta Revolução Russa de 1917 certamente não havia sutileza na mensagem.

O cinema só voltou tratar do tema de Inteligência Artificial 24 anos depois, nos Estados Unidos, com um pouco mais de positividade no filme de 1951, O Dia em Que a Terra Parou (The Day The Earth Stood Still), que nasceu do conto Farewell to the Master, de Harry Bates e que trazia o robô Gort como protetor dos heróis. Infelizmente, em 1968, o gênio Stanley Kubrick voltou a ressaltar desconfiança humana quando pôs no sistema HAL 9000, em 2001: Uma Odisséia no Espaço as decisões questionáveis e manipuladoras. Aliás, é irônico lembrar da forte influência de HAL na personagem da Mother na série ultra original, Raised by Wolves. HAL foi o primeiro sistema mais humano do que qualquer robô visto, mesmo como um Jarvis de Os Vingadores (depois o herói, Vision), sem corpo mas onipresente, lógico e em controle. Para Kubrick o “Deus na máquina” cuja humanidade o faz temer sua própria morte. Para muitos, foi Hal que mudou o jogo da IA para sempre. O vilão tecnológico nascia e nas décadas seguintes, sempre nos colocavam em risco.

Mas voltemos à fonte de tudo, Metrópolis.

Thea, que nasceu em uma família da base da nobreza alemã, com oficiais no governo, cresceu com conforto e logo se revelou uma criança prodígio, já tendo artigos sobre Arte sendo publicados quando tinha apenas 13 anos. Sua busca por independência (que não era necessariamente material, pois era rica) a levou para ser atriz, para grande decepção de sua família. Aos 29 anos, já casada, se estabeleceu em Berlim e Thea passou a escrever livros, quase todos sobre mitos épicos e lendas, mas, em geral, patrióticos. O cinema só entrou em sua vida quando uma de suas obras virou filme, Die heilige Simplizia e Thea passou a ser também roteirista, rapidamente reconhecida como uma das melhores na Alemanha.

Em pouco tempo a escritora e Fritz Lang estabeleceram uma parceria, nascida de um interesse comum sobre a Índia e a adaptação de um dos livros dela sobre o tema pelo diretor. Rapidamente nasceu uma ligação amorosa entre os dois, com Thea se divorciando para se unir legalmente a Lang, em 1922.

A visão para o conflito de classes de Metrópolis nasceu do pós-Guerra, onde a crescente onda de pobreza dos anos 1920s foi testemunhada por Thea, que costumava cozinhar pessoalmente para toda equipe de filmagem durante os trabalhos do marido. Quando decidiram adaptar o livro, ela se envolveu mais do que costume na produção, indo além dos roteiros e selecionando inclusive o ator Gustav Fröhlich para um dos papéis principais. Brigitte Helm (que lembra Thea), foi escolhida por Lang depois de testes. A imagem dela ficou eternizada como a mais IA mais famosa do cinema.

HEL é a Inteligência Artificial em forma de máquina humana, no livro conhecida também como Maschinenmensch. Na concepção de Thea, é um “ser delicado e sem rosto, de material transparente feito de cristais no lugar de carne e prata em vez de ossos”. Com olhos que sugeriam uma “loucura mansa”, ela foi criada pelo cientista Rotwag, que a batiza como “Paródia’, em referência a ser mesmo uma imitação da condição humana. Outro nome que ele sugere para sua criação é “Futura”, com uma terceira possibilidade de chamá-la de “Desilusão” por ser apenas parcialmente uma mulher.

Estão sem fôlego com a descrição de Thea para a IA, já em 1927? Pois seguimos. Rotwag ressalta que “Futura” é 100% obediente à ele, mas que é também perfeita para “conduzir os homens ao seu destino”. Visão machista da femme fatale que tira o homem do sério, mas era comum em 1927. A grande virada de “Futura” vem com a obsessão secreta de Rotwang sobre uma inocente trabalhadora, Maria, que e também a paixão do rico Fredersen. Enciumando e querendo derrubar o sistema, o cientista sequestra Maria e dá seu rosto e formas à máquina, que é secretamente programada para desobedecer Fredersen e destruí-lo.

No filme é diferente. A criação já tem formato metálico de mulher (usando a atriz Brigitte Helm como modelo) e Rotwang a chama de Hel e de sua amante, dizendo que ela não está morta, mas viva na forma de um autômato. Com uma roupa que lembra uma armadura, ela se transforma na imagem da humana Maria quando o cientista a sequestra. Sabemos quem é HEL e quem é Maria pela diferença das maquiagens, com a vilã sendo mais forte e Maria mais natural. A sugestão que Metropolis eternizou (e que anos depois Ridley Scott explorou em Blade Runner) é que a “falta da alma” na máquina a faz inerentemente má, uma leitura reforçada com a edição do longa original que cortou a cena onde Rotwang programa HEL para ser destrutiva, deixando a dúvida o real controle do cientista sobre ela.


As edições do Metrópolis original fazem parte da mítica da obra. O filme original (hoje perdido) era extremamente longo, em especial para um filme mudo que não costumava chegar ou muito menos passar de 1h. Tinha quase três! A versão americana ficou com de quase 2h e “amenizou” as conotações sexuais, assim como as breves cenas de nudismo. O que foi muito cortado foi a parte em que HEL aparecia, que foi reduzido ao mínimo apenas porque o nome lembrava inferno em inglês e era tido como desrespeitoso. A edição tirou a dimensão da personagem e alimentou erroneamente sua autonomia e motivações.

Fora da Alemanha também houve cortes significativos, não apenas para reduzir o tempo mas para remover partes consideradas “inapropriadas” e que “incentivavam” o comunismo ou não era respeitoso com imagens religiosas. Ou seja, não adiantou em nada a revolta de Fritz Lang, a primeira restauração mais próxima da original só chegou aos cinemas em 1984, na versão colorizada e musical de Giorgio Moroder.

Como o leitor Antonio Salles lembrou bem, 80 anos depois, o filme original – quase completo – voltou às telas, com uma sessão especial no Festival de Berlim, em 2010. A restauração dessa versão agora considerada definitiva só foi possível porque, em 2008, um negativo de 16 mm foi descoberto em Buenos Aires e ele tinha trinta minutos de cenas cortadas da versão mais recente anterior, de 2001. Portanto especialistas celebram que finalmente Metrópolis esteja efetivamente restaurado. A sessão especial da Berlinale de 2010 foi exibida com a trilha sonora original de Gottfried Huppertz.

Metrópolis já está em domínio público e é uma obrigação para os fãs do cinema verem e reverem o que está disponível. Nem entramos nas questões de cenários ou politica, porque, como falamos, a genialidade da obra é ser contemporânea, quase 100 anos depois.

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3 comentários Adicione o seu

  1. Antonio Salles disse:

    Sim, mas a autora desta matéria ignorou por completo a edição de ‘Metropolis’ apresentada na Berlinale 2010 cujas cenas consideradas perdidas durante 80 anos foram encontradas numa cópia em 16mm no Museo del Cine de Buenos Ayres, Argentina, em 2008. O filme hoje, pelo que se sabe, não é mais considerado perdido.

    Curtido por 1 pessoa

    1. super verdade. será corrigido

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    2. Antonio, texto acrescentado graças à sua lembrança. Obrigada!

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