Depois de 10 anos fora da programação do Royal Ballet, a remontagem de Cinderella está em cartaz em Londres, com o elenco liderado por Marianela Nuñes. Não história de clássicos sem drama, e Cinderella tem alguns.
O conto infantil da gata borralheira ficou mais conhecido pela versão francesa de de Charles Perrault sempre foi óbvio para a dança, incluindo fadas, bailes e finais felizes, mas a primeira versão oficial e completa da história foi em Viena, em 1813, só chegando à Londres no ano em que a ópera de Giaccomo Rossini, La Cenerentola, fez sucesso em Paris, em 1822. Obviamente Petipa teve sua versão em 1893, com partitura de de Boris Fitinhof-Schell, mas, em geral, Cinderella não superava a perfeição de A Bela Adormecida.

Frederick Ashton estava no elenco da montagem inglesa de 1906, como o Príncipe, e desde de 1939 queria criar um balé completo (de 3 anos e grande produção), a Guerra Mundial atrasou os planos e foi essencial porque nesse período a partitura final da obra foi escrita por Sergei Prokofiev, em uma encomenda para o Bolshoi Ballet, que estreou sua versão em 1945. O Kirov Ballet fez sua própria montagem no ano seguinte, com coreografia de Konstantin Sergeyev e Olga Lepeshinskaya como Cinderella, mas foi a substituta Galina Ulanova que virou uma lenda viva na União Soviética dançando o papel principal.


Em tempos de Paz, Frederick Ashton seguiu com sua ambição pessoal e entendeu que era hora quando no início de 1946, em um discurso na Exposição de Teatro Soviético, Ninette de Valois disse que mal podia esperar para ver”o primeiro balé clássico inglês completo”. Ele sabia que seria o autor dessa obra.
Embora o projeto tenha quase sido a outra obra-prima de Ashton, Sylvia (que só estreou em 1952), foi Cinderella que ganhou a liderança. A essa altura, o coreógrafo já tinha escutado e aprovado a versão musical de Prokofiev, mas, na sua versão, “editou” e reduziu drasticamente a obra original, eliminando a cena completa do príncipe na busca de Cinderella, que na Rússia era a oportunidade tradicional de incluir danças nacionais. Como achou desnecessário e sem música envolvente, tirou do seu ballet, assim como outras variações pequenas.
Para Ashton Cinderella foi sua maior oportunidade de homenagear seu ídolo, Petipa e na sua visão, a história é essencialmente sobre sonhos. Sua heroína é vista inicialmente sem a sapatilha de ponta, como se ainda fosse um sonho ser bailarina, tanto que o lendário solo com a vassoura ressaltasse isso. Sua impressionante entrada no baile, já na popnta, descendo magicamente as escadas e avançando em um pas de bourrée na ponta até a frente do palco sempre é um momento de grandes aplausos. Quando volta à realidade, é a sapatilha que a convence de que o que viveu era verdade. Há mais!
Há 75 anos, uma das grandes atrações da montagem, mantida ao longo das décadas, foi a de transformar os papéis das irmãs de Cinderella em pantomima e interpretadas por homens vestidos de mulheres. Hoje teria muitos problemas culturais e sociais pela ‘brincadeira’, mas trazer as duas como alívio cômico só ressalta a delicadeza da gata borralheira. Ninguém menos do que o prório Frederick Ashton e Robert Helpmann roubaram a cena como as “irmãs feias”. E na coreografia, Ashton interpreta como sua Irmã Feia sonhasse ser Odile no baile de Siegfried, de O Lago dos Cisnes, ou a Fada Açucarada, de O Quebra-Nozes, sem conseguir. Já a outra Irmã Feia e mandona (Helpmann) repete um passo conhecido como “mergulho de peixe”, que é um passo conhecido do pas de deux do casamento em A Bela Adormecida.


Agora faltava encontrar sua Cinderella e essa história rendeu algumas lendas de disputa também.
Em 1948, a escocesa Moira Sheraer era uma das principais bailarinas no Royal Ballet (na época, Sadler’s Wells), mas na companhia, a não havia maior estrela do que Margot Fonteyn. No entanto, fora da dança, havia outra realidade. Moira era maior do que Margot pois estrelava a grande produção de Hollywood daquele ano, Os Sapatinhos Vermelhos (o melhor filme sobre dança já feito), filme indicado ao Oscar e um grande sucesso de bilheteria. A elegância e a técnica impecáveis faziam de Moira, aos 22 anos, uma referência do que era ser uma bailarina, como ela eternizou no cinema como Victoria Page. Ao estrelar a maior produção do Royal até então, Moira Shearer saiu da sombra de Margot e fez grande sucesso como a gata-borralheira.


Em sua autobiografia, Margot Fonteyn reconta a história como se ela tivesse sido a musa de Ashton para a produção, não Moira. Segundo a bailarina, ao ver que teria que dançar a produção de três atos, considerou que seria exaustivo fazer todas as apresentações da temporada, mas, para sua surpresa, quando o elenco foi anunciado pela primeira vez viu que embora fosse dançar a estreia, Moira Shearer iria alternar com ela o papel principal. Margot teria comentado com Ashton que estranhava a decisão da companhia, mas ele simplesmente retrucou que ela mesma tinha dito que seria exaustivo dançar sozinha. Aí vem a “lenda”: coincidentemente Margot se machucou duas semanas antes da estreia de Cinderella. Foi assim que Moira Shearer fez a estreia e seguiu “dançando todas as apresentações”, como Fonteyn teria se recusado a fazer. Dançar a primeira noite de uma produção, no meio da dança, é um sinal de prestígio e estrelato. O papel passou a ser referido como “de Moira” e foi, obviamente um enorme sucesso. Mesmo em 1984, Frederick Ashton desmentiu Margot, admitindo que o balé foi concebido mesmo para Moira. “Você pode ver o estilo de [Moira] Shearer na variação do salão de baile: frágil”, ele afirmou.

Embora a honestidade de Margot de ter se sentido ameaçada seja elegante e incrível, Moira Shearer logo se aposentou dos palcos e decidiu trabalhar apenas como atriz. Ainda assim, mesmo com outras “Cinderellas”, como Violetta Elvin e Nadia Nerina, depois que Margot finalmente estreou no papel, ninguém conseguiu superar seu sucesso no ballet e o filme que foi gravado com ela no papel comprova.
Cinderella, de Frederick Ashton foi remontado em várias outras companhias de balé ao redor do mundo e no próprio Royal, incluindo a temporada de 1987, que contou com um dos looks mais icônicos da Princesa Diana: seu longa bordado com estrelas e astros e assinado por Murray Arbeid. Para a versão de 2023, que celebra os 75 anos do balé, a companhia traz uma nova atmosfera ao mundo etéreo do clássico, com cenografia assinada por Tom Pye e figurinos de Alexandra Byrne. Mágica pura, uma linda homenagem.

