Vaias e escândalo: os 110 anos de Sagração da Primavera

A noite de 29 de maio de 1913 é lendária para Arte. A reação agressiva do público parisiense para a primeira apresentação da obra A Sagração da Primavera, dos Ballets Russes é inigualável até hoje e igualmente questionada. Vaias e gritos são fatos, mas se eram contra a música e/ou a coreografia inovadoras de Igor Stravinsky e Vaslav Njinsky, respectivamente, ninguém chegou à um acordo nem mesmo 110 anos depois. O que ninguém disputa é sua relevância cultural que se mantém insuperável, até mesmo pelas versões da escandalosa estreia do balé baseado em mitos pagãos sobre o sacrifício de uma jovem donzela escolhida para dançar até morrer.

O compositor descreveu que “protestos moderados contra a música podiam ser ouvidos desde o início”, mas aparentemente a revolta foi crescendo ao não apreciarem de forma alguma a aposta moderna de Nijisnky para o balé, sem nenhum elemento da dança clássica, ao ponto de que os bailarinos mal ouviam a partitura por conta do volume dos gritos da platéia, levando o coreógrafo à histeria nos bastidores. Em outras palavras, a “culpa” ficou mais pesada nos ombros do bailarino, que era controverso e inovador. Há quem defenda que o escândalo foi uma jogada de marketing detalhadamente desenhada pelo empresário Sergei Diaghilev que sabia perfeitamente que tinha em suas mãos o material disruptivo e revolucionário.


O que sugere ser essa a intenção o fato de que o compositor escreveu em seu diário que ele e o empresário teriam ficado assustados e empolgados com a estreia e que Diaghilev teria inclusive argumentado que foi “exatamente como queria”. Será? A bailarina Lydia Solokova, que estava no palco, parece concordar. “Eles se aprontaram. Nem deixaram a música tocar para a abertura. Assim que soube que o maestro se posicionou, começou o alvoroço”, disse em uma entrevista em 1965.

As teorias conspiratórias crescem quando divergem entre 40 pessoas presas e falta de evidências de briga em massa e ou de ataque aos dançarinos (mesmo com o depoimento do maestro dizendo que jogaram de tudo no palco). Além disso, discordam de quando as vaias começaram, com uns alegando que foi a partir das primeiras notas (como diz Lydia Solokova) e outros quando os bailarinos entraram em cena (como alega Stravinsky, quando menciona em seus relatos que éiao grupo de Lolitas de joelhos dobrados e tranças compridas pulando para cima e para baixo”). A favor do músico está o fato de que quando a partitura foi apresentada um ano depois como um concerto, foi ovacionada.

Talvez por isso, em geral, a “culpa” do suposto fracasso de 1913 fica na conta de Nijinsky, o ex-amante de Diaghilev e objeto de uma relação complexa que chegaria ao fim no mesmo ano, quando o dançarino se casou impulsivamente com  Romola de Pulszky no final de 1913, acelerando a cisão entre ele e o mentor-empresário.

Bailarino clássico brilhante, Vaslav Nijinsky passou a trabalhar como coreógrafo após a saída de Michel Fokine e imediatamente comprovou que era original, algo que no ballet clássico, não é bem recebido. Sua parceria com Stravinsky era anterior à sua nova posição, com sua interpretação no balé Petrouchka, por exemplo, sendo considerada algo perto da mitologia ainda hoje. O sinal de que Nijinsky era “moderno demais” veio até antes de A Sagração da Primavera, com seus balés L’après-midi d’un faune e Jeux, ambos com música de Claude Debussy, rejeitados duramente por críticos e público. Portanto, quando foi anunciado que o novo balé destacaria ritos pagões russos, com toques de primitivismo e modernidade, deixaram todos com pé atrás antes mesmo que a cortina subisse, que é o que o testemunho de Lydia Sokolova reforça.

O “estilo” Nijinsky era o oposto do balé. Ele gostava de imagens “planas” como quadros e frequentemente enfatizava movimentos no solo, com os pés voltados para dentro, sem sapatilhas de ponta ou grandes saltos. Os bailarinos estranhavam e sofriam para fazer o que ele queria, e, no caso de A Sagração da Primavera tanto ele como Stravinsky achavam mutualmente que um não sabia o que estava fazendo. O compositor escreveu que o coreógrafo “tinha sido confrontado com uma tarefa além de sua capacidade” e Nijinsky se irritava com a arrogância de Stravinsky, alegando que “… tanto tempo é desperdiçado quando Stravinsky pensa que ele é o único que sabe alguma coisa sobre música. Quando trabalha comigo, ele explica o valor das notas pretas, das brancas, e afins como se eu nunca tivesse estudado música… Eu queria que ele falasse mais sobre a sua música de “Sacre”, e não que me desse uma palestra sobre a teoria musical”. Climão que comprova que a obra seria desde o início, divisória.

110 anos depois toda descrição daquela noite no Teatro dos Champs Elysées parece algo ainda moderno, portanto é de se acreditar que as pessoas tenham reagido “mal”. Particularmente, mesmo entendendo o brilhantismo da partitura, eu até hoje não gosto da música. Reza a lenda que quando Diaghilev ouviu a música pela primeira vez questionou Stravinsky se “será que vai durar muito tempo desta forma?” ao que ouviu como resposta um seco “até o fim, minha querido.”

Entre os relatos ainda confusos daquela importante noite cultural, há a coragem da companhia que dançou até o final, apesar da turbulência do público conseguindo, talvez por isso, ser aplaudido quando acabou. Mais ainda, teve mais seis apresentações, todas sem nenhum furor.

A carreira e a vida pessoal de Nijinsky nunca mais foi a mesma depois daquele 29 de maio de 1913. Desde o início ele provocava profundamente os padrões morais da época, em 1912 seu L’après-midi d’un faune, com música de Claude Debussy ficou lembrado pela simulação da masturbação no palco por isso, mais do que o maior bailarino clássico, seria mais justo lembrar de Nijinsky como um dos pais da dança moderna. Sua visão de A Sagração da Primavera ficou “esquecida” até os anos 1980s, quando foi remontada pelo Joffrey Ballet. Sua coreografia foi documentada apenas pelos relatos de testemunhas, fotografias e as notas detalhadas preservadas pela diretora do Royal Ballet, Marie Rambert.

Apontada como a “noite em que começou o século 20”, o 29 de maio de 1913 é ainda uma lenda a ser estudada. Após se casar com Romola durante a turnê pela América dos Sul, Nijinsky e Diaghilev nunca mais se falaram. A saúde mental do bailarino, que era algo hereditário, foi se deteriorando e o período da guerra mundial só piorou tudo.

Estabelecido com a mulher e filhas na Suíça neutra, Nijinksy escreveu seu diário que registra seu processo de crescente psicose até sua internação, em 1919, quando foi diagnosticado como esquizofrênico. Por trinta anos, até sua morte em 8 de abril de 1950, ele alternou internações e momentos em casa, mas nunca mais criou ou dançou novamente. Till Eulenspiegel foi sua última obra completa, antes de ser internado. Porém é a inovação de A Sagração da Primavera que divide até hoje críticos e historiadores. A única tecla que é unânime é a que a obra se trata de uma das peças mais originais feitas na Arte, e que alimenta mais ainda a imortalidade de Vaslav Nijisnky na cultura ocidental como o símbolo do rebelde criativo e incompreendido, muito à frente de seu tempo.

Publicidade

Deixe um comentário

Preencha os seus dados abaixo ou clique em um ícone para log in:

Logo do WordPress.com

Você está comentando utilizando sua conta WordPress.com. Sair /  Alterar )

Foto do Facebook

Você está comentando utilizando sua conta Facebook. Sair /  Alterar )

Conectando a %s