O único retrato creditado como o de Anne Askew se chama ” Uma Dama Desconhecida”, pintado por Hans Eworth por volta de 1560 e descrito como “Sra. Thomas Kyme”, ou ‘Anne Ayscough/Askew’. O que reforça ser mesmo o rosto dessa mulher sofrida e marcante são os dizeres acrescentados à sua figura austera: RATHER DEATHE/THEN FALSE OF FAYTHE (Melhor a morte do que falso testemunho). Por anos achavam que a figura era a da Rainha Mary, da Escócia, mas hoje é aceita como o retrato da primeira mártir protestante que foi queimada na fogueira como herege em 1546 por se recusar a reconhecer que o Sacramento era o ‘carne, sangue e osso’ de Cristo. Mais ainda, por ter se recusado a entregar outros protestantes, incluindo a Rainha Katherine Parr, mesmo sobre assombrosa tortura antes da execução de morte.
A trágica história de Anne Askew é sempre uma rápida página como coadjuvante da última esposa de Henrique VIII, o que se repete no filme Firebrand, que vai estrear em Cannes e terá a talentosa Erin Doherty como Anne. Houve destaque à sua morte em The Tudors, mas apenas uma menção em Becoming Elizabeth. Ao lado de Margaret Pole, cuja história tampouco foi até o fim na série The Spanish Princess, Anne Askew foi vítima de falsas acusações e passou por uma violência tão assustadora que mesmo dentro do legado sangrento de Henrique VIII consta como uma das mais trágicas de todos os tempos.

A curta vida de Anne Askew terminou aos 25 anos de uma das maneiras mais trágicas para uma religiosa: acusada de heresia e queimada viva. Anne, que pode ter seu nome soletrado como Ayscough ou Ascue, ou até mesmo citada pelo nome de casada – Anne Kyme – foi escritora, pregadora e poetisa. Filha de um cavalheiro na corte do rei Henrique VIII, Anne teve sua vida determinada a partir de seu casamento, aos 15 anos. A união forçada marcou a uma aliança de sua família, de”linhagem antiga e nobre”, com os ricos Kyme. A escolhida tinha sido sua irmã mais velha, Martha, mas ela morreu inesperadamente e, para não perder a oportunidade, o pai determinou que Anne fosse a substituta.
Nem mesmo o nascimento dos dois filhos salvou a jovem de um casamento infeliz o que a levou a se dedicar ainda mais à religião protestante, onde encontrou alento para seu sofrimento. Anne, nascida católica, foi convertida quando a Bíblia foi traduzida para o inglês e passou de fervorosa à pregadora rapidamente, ganhando notoriedade e trazendo ainda mais problemas para seu marido, que era católico. Descrita como “teimosa” e “falante”, sofreu abusos físicos do marido, mas não cedeu, sendo expulsa “violentamente” de casa e perdendo o contato com os filhos. Ainda assim, considerava a liberdade inesperada como “uma dádiva de Deus” e a justificativa perfeita para buscar em Londres a autorização para o divórcio. Uma determinação que a levaria cruzar com a Rainha Katherine Parr e o Rei Henrique VIII.
Uma das várias ousadias de Anne para a época foi a de, uma vez separada do marido, não mais usar o nome de casada e voltar a ser Askew. Em Londres, se engajou no grupo dos ‘reformadores’ (incluindo Joan Bocher), que queriam acabar de vez com o catolicismo em terras inglesas e foi ganhando repercussão como “evangelisadora”. Mandou livros para a Rainha através das damas de companhia de Katherine, que também ajudavam Anne financeiramente. Foi essa ligação jamais confirmada que os inimigos de Katherine usaram para tentar destruir sua reputação e até instigar o perigoso Henrique VIII a executar (pela terceira vez), uma esposa. Em outras palavras, Anne Askew foi o bode expiatório de uma conspiração religiosa.
A prisão, a tortura e o martírio
A questão religiosa que mais à frente abalaria tanto a Inglaterra de Elizabeth I como a França de Catarina de Medicis (como acompanhamos em A Rainha Serpente), nasceu justamente do cisma criado pelo Rei quando quis se casar com Ana Bolena, criando uma polarização religiosa impossível de erradicar, com ambos os lados errando na mão. Os católicos eram os ‘tradicionalistas’ e os protestantes, os ‘reformadores’. Ambos tentavam eliminar o outro.
Henrique VIII tentou manter uma diplomacia entre ambas as fés, uma tolerância muito tênue que era frequentemente o estopim para violência e golpes. A essa altura de sua vida, o rei já queria voltar a ter uma melhor relação com Roma e por isso ouvia a corrente tradicional para ‘interromper’ ou desacelerar a ‘reforma’, o que foi usado para efetuar prisões e restrições para os protestantes, muitas delas lideradas por Thomas Wriothesley, Richard Rich, Edmund Bonner e Thomas Howard. Os quatro homens queriam cortar a crescente influência de Katherine sobre Henrique VIII e usaram suas suspeitas religiosas como o meio mais rápido.
Uma das regras mais absurdas dda época foi resumida pelo bispo Stephen Gardiner que dizia que franqueza ou firmeza de fala seria “uma tática usada pelo diabo para espalhar heresia”. Imaginem calar mulheres! Transformar discurso em pecado e perigo era uma artimanha eficaz para manter a submissão. A própria Katherine quase foi presa pelo marido quando ‘errou’ na intensidade de dua fala e seus inimigos queriam aproveitar a deixa. Para implicá-la, pressionaram suas damas de companhia: Katherine Willoughby, Anne Calthorpe, Joan Champernowne, Lady Hertford e até a irmã da rainha, Anne Parr.

Nesse cenário, a opinativa e dedicada Anne Askew virou presa fácil, sob o manto de figura ameaçadora justamente pelo discurso claro e eficaz dela, mais culta que seus próprios inquisitores. Isso foi percebido na primeira vez que Anne foi presa e que conseguiu desconcertar o bispo Edmund Bonner com respostas simples e precisas da Bíblia. Sem entregar o que queriam, foi solta, mas detida duas vezes nos meses seguintes. Seus inimigos conseguiram usar sua aversão à Eucaristia como prova de heresia (sob o ponto de vista Católico) e a transferiram para Torre de Londres, para ser torturada e “julgada”. Para escapar da fogueira, eles queriam a lista de mulheres que pensavam como ela, mas Anne se recusou a falar.
Os documentos oficiais da época detalham que houve dois “exames” antes de sua execução, que duraram dois dias completos. O interrogatório foi pessoalmente conduzido por Wriothesley, Gardiner e contou com as paricipações de John Dudley e Sir William Paget (o principal secretário do rei), deixando claro quem era o real alvo da investigação. Diante da recusa de Anne de entregar nomes, foi torturada de uma forma incrivelmente cruel até pelo relato dos carcereiros da Torre. Segundo eles, Anne foi levada para uma sala no porão da Torre Branca, onde ficava o temido “rack”, a máquina de tortura onde a pessoa amarrada é “esticada” até romper músculos e ossos. Despida na frente dos homens, ficando apenas de camisola, Anne chegou a ser levantada cerca de 5 polegadas acima de sua cama e esticada lentamente. Desmaiou de dor, foi reanimada e passou pelo procedimento mais duas vezes, sem citar um nome.
Há versões de que o Rei – ao saber disso – a teria perdoado, mas que Wriothesley e Rich decidiram trabalhar sozinhos mesmo assim, usando tanta força nas giratórias que “seus ombros e quadris foram puxados de suas órbitas e seus cotovelos e joelhos foram deslocados”. Os gritos de Anne Askew foram ouvidos por duas testemunhas que estavam no jardim, do lado de fora da Torre. Ainda assim, ela não citou ninguém. O perdão do Rei parece improvável porque em seguida veio a sentença final: ela seria queimada viva por heresia.
Assim, com apenas 25 anos, Anne foi levada amarrada em uma cadeira (não podia mais andar ou sentar” para estaca e queimada no dia 16 de julho de 1546, ao lado de três homens também condenados. Dizem que, por misericórdia, teriam amarrado pólvora ao redor de seus corpos para acelerar a morte.

Sem surpresa, Anne Askew virou uma mártir protestante, embora homens de sua época ainda a tenham descrito como “fraca”. Ela deixou textos que ainda hoje documentam com clareza como eram os conflitos do período mais sangrento do reinado de Henrique VIII. Nos textos de Anne, há seus confrontos com figuras masculinas de autoridade da época.
Todo sofrimento de Anne, no entanto, é usado como pano de fundo como a ameaça e o perigo que a Rainha Katherine Parr conseguiu escapar. Essa é a base da história que ai conduzir Firebrand, mas a presença da atriz Erin Doherty sinalizam que, como na série The Tudors, a triste e arrepiante história de Anne ganhe destaque, mesmo que em geral, seja um adendo na biografia de Reis e Rainhas.