Um mistério completa 540: o reinado de Ricardo III

Há muitos monarcas cujo legado não resistiu o julgamento do tempo. Populares em vida, tiranos após a morte, em alguns casos. Poucos como Ricardo III, no entanto, viveram o caminho contrário. Hoje, 6 de junho de 2023 completam exatos 540 anos de foi declarado Rei. E mesmo mas de cinco séculos depois, historiadores se perguntam como o terceiro dos irmãos York, tão distante do sonho da Coroa, acabou herdando o trono e uma fama de tio assassino e usurpador. Para os “Ricardianos” há uma fácil explicação: ele foi alvo de uma propaganda Tudor, imortalizada por uma peça teatral brilhante imortalizadas nas palavras de William Shakespeare. E há uma movimentação para fazer justiça tardia com sua memória.

A missão encabeçada por Phillipa Langley, que já virou filme, sugere que há espaço para esse questionamento. Phillipa tem dados que mostram que Ricardo não era impopular como imaginamos e uma vez que ela encontrou sua tumba esquecida, damos ouvidos. Há sempre dois lados de uma história e como Ricardo perdeu (literalmente) a coroa em uma batalha, quem liderou a narrativa foi Henry VII.

Os ricardianos ficaram um tanto frustrados com a confirmação de que a descrição física de Ricardo III como corcunda não era errada (o esqueleto comprova a escoliose acentuada), mas o resto é aberto para debate. No monólogo de abertura da peça ele se apresenta dizendo que é indigno de amor ou pena , uma pessoa “sutil, falso e traiçoeira”, sendo que o vemos como único responsável por criar conflito entre os irmãos mais velhos até suas mortes, corteja e se casa por dinheiro, manda matar os sobrinhos… a lista de crimes é longa. “Richard ama Richard”, justifica narciso maligno> Eventualmente ele reconhece que sua “consciência tem mil línguas diversas,” e que “cada história me condena como vilão”, se conformando que “Se eu morrer, nenhuma alma terá pena de mim.
E por que deveriam eles, já que eu mesmo não encontro em mim nenhuma piedade de mim mesmo?”

Ricardo estava errado, como sabemos, muitos se sensibilizam com sua história. Sétimo filho sobrevivente e o quarto filho sobrevivente de Ricardo, 3º Duque de York, ele fazia parte da família nobre mais antiga da Inglaterra assim como da mais rica, mas jamais com uma chance real de vir a ser herdeiro da Coroa e por isso quase nada foi registrado sobre sua infância, pois era quase irrelevante. Porém quando tinha apenas 6 anos, um conflito familiar que viria a ser conhecido como A Guerra das Rosas mudou tudo. Seu pai se opôs ao primo e rei, que representava a casa Lancaster e conforme as tensões aumentaram, os filhos passaram a fazer parte de complôs e batalhas sangrentas. Ainda sem completar 10 anos, o pequeno Ricardo foi deixado pra trás pelo pai, irmãos e tio, foi colocado sob custódia por parentes, viu sua família ser presa, considerada culpada de traição e despojada de todas as suas terras e títulos. Ninguém o culpa por alimentar ressentimentos.

Quando seu irmão mais velho, Edward, capturou o rei Henrique VI e assumiu o trono, Ricardo passou a estar na linha direta de sucessão, com apenas 8 anos e feito duque de Gloucester. É incerto quando a escoliose que determinou sua figura foi descoberta, imagina-se que no início da adolescência, quando estava sob a proteção do Conde de Warwick, cuja filha Anne, viria a ser sua esposa anos depois. Educação e treinado como cavaleiro, ele continuou sendo ‘jogado’ de um lado para o outro conforme alianças se faziam e desfaziam com rapidez, mas Ricardo se manteve fiel ao irmão, Rei Edward IV enquanto George, o do meio, não. Há relatos de que Ricardo agia como apaziguador entre os Yorks – relatos mais tarde usados como dissimulação por parte dele – e, aos 18 anos, passou a ser reconhecido como ótimo estrategista em campos de batalha, incluindo a que custou a vida de seu primo e mentor, Warwick.

Em confronto não há como questionar o vencedor, mas fora a batalha é mais sangrenta e confusa. A série de assassinatos, incluindo a morte suspeita de Henrique VI, podem ter sido escolhas de Edward, mas para muitos já tinha o dedo de Ricardo, acusado de ter matado pessoalmente o filho dele na batalha e o rei na sua própria cela. Nenhuma das acusações se baseia em evidências concretas, apenas fontes que o colocaram no local.

Uma vez casado com Anne, Ricardo se desentendeu com George por conta da herança de Warwick (o irmão era casado com a outra filha do Kingmaker, Isabel) e apenas quando Edward IV interveio que se conformaram. Os próximos 10 anos foram vividos em Yorkshire, ao norte, onde nasceu seu filho legítimo, Edward de Middleham, e dois ilegítimos, John e Catherine, cujas mães são desconhecidas. Em Yorkshire, Richard era querido e até conhecido como ‘justo’, algo incomum para nobres. Foi por volta de 1475 que as coisas começaram a ficar dúbias, com Ricardo lutando pela coroa do irmão, mas nem sempre concordando com ele.

Quando Edward IV morreu inesperadamente em abril de 1483, a Inglaterra voltou a ficar vulnerável à França e internamente não havia união que consolidasse o comando. A rainha consorte, Elizabeth Woodville, se opôs aos homens de confiança do marido, precisando então a intervenção de Ricardo para supervisionar a sucessão de seu sobrinho de 12 anos como Edward V. George já tinha sido executado anos antes por Traição e seus filhos deserdados. No meio de tudo isso, o casamento de Edward IV e Elizabeth Woodville foi declarado inválido por bigamia, restando a Ricardo assumir o Trono. Os ricardianos poderão sempre argumentar pela coincidência de muita coisa, mas que o casamento só tenha sido invalidado quando Ricardo estava à frente de resolver a sucessão, parece extremamente suspeito. A corrente que defendia a volta dos Lancasters, na pessoa de Henry Tudor, ganhou fôlego novamente.

Não ajuda que os sobrinhos tenham sido presos na Torre de Londres e jamais vistos depois disso. Os documentos do breve reinado de Ricardo sugerem um comando inteligente e justo, sendo elogiado pela qualidade das leis que introduziu. Outro argumento à favor dele é que sua cunhada, Elizabeth Woodville colocou suas filhas sob sua custódia, mesmo com Henry Tudor jurando que se casaria com a filha mais velha dela, Elizabeth de York, ou seja, haveria um entendimento entre eles (porém a promessa de casamento também teria o dedo dela, aparentemente). Tudo fica pior para ele quando seu único filho legítimo, Edward, morreu poucos meses antes de sua mãe, Anne, deixando um sério problema de sucessão.

Rei viúvo e sem filhos era inaceitável, por isso Ricardo começou a negociar um casamento com Joana de Portugal, uma princesa com sangue Lancaster, enquanto tentava negociar o casamento da sobrinha com outro que não fosse um Tudor. Na época, isso também não ajuda aos ricardianos, houve boatos de incesto e que a intenção dele era de se casar com Elizabeth, algo que teve que negar publicamente. Sem surpresa, são os anos conturbados que servem como base para a peça de Shakespeare.

Henry Tudor passou a ter o apoio francês para sua causa e ele invadiu a Inglaterra, desafiando Ricardo III, em 1485. Os dois se confrontaram em Bosworth, perto de Leicestershire. Traído em campo por Thomas, Lord Stanley, padrasto de Henry Tudor, Ricardo foi violentamente derrotado, lutando bravamente até ser destronado e ter seu corpo jogado em uma Igreja na cidade onde mais de 400 anos depois foi localizado. Se a Sociedade Ricardo III conseguir, muitos dos crimes atribuídos apenas à ele terão outros autores. Em pouco menos de dois anos com a Coroa, ele teria tido um governo justo e equitativo, que não durou por conta de política e ressentimentos maiores que sua existência.

A série The Hollow Crown – as peças de Shakespeare sobre a Guerra das Rosas – não está mais na Amazon Prime Video, mas a série The White Queen, que está alinhada com essa narrativa moderna, está na Lionsgate Plus. e o filme sobre a saga de Phillipa, The Lost King, em breve chegará às plataformas. Ficam as dicas!

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