O medo da tecnologia (quase) une Hollywood

Desde que o cinema é cinema o medo da tecnologia é muito real. Embora crie oportunidades e efeitos realistas incríveis, que colaboram com o fascínio do público que paga para se encantar e escapar da realidade, a mensagem de que máquinas não podem ter nossa confiança é consistente. De Metropolis a Missão Impossível 7, o receio é a única constância em pelo menos 96 anos. E é esse medo, agora real e direto, que literalmente parou Hollywood em julho de 2023.

Roteiristas entraram em greve no dia 2 de maio, demandando alterações nos modelos de negócios por conta das plataformas digitais assim como a regulação do uso de Inteligência Artificial na parte criativa, encontrando resistência dos Estúdios nos dois pontos. Atores deram apoio aos escritores, quase sempre nas redes sociais, mas agora se unem a eles – pela primeira vez em mais de 60 anos – em um pleito similar. No caso deles, o medo da tecnologia é ainda mais real quando atores mortos são trazidos digitalmente à vida (sim, lembra de Star Wars?) ou são rejuvenecidos, provando que em pouco tempo nem mesmo dublagem demandará sua presença (uma vez que a IA pode recriar diálogos, músicas, livros).

Obviamente acusar a Ciência de antagonista é simplificar muito questões mais complexas porque o que move o medo (justificado) está no fato de que ele reduz (ou elimina) salários, divisão de royalties ainda mais rapidamente do que o processo criativo. Portanto, estabelecer regras é efetivamente, urgente.

O que acontece agora que literalmente TODOS pararam? Os Estúdios, que estavam irredutíveis (e seguem se achando certos) terão que sentar e conversar. A estratégia de ignorar os roteiristas ganhou um twist que não esperavam. Seria o momento de provar a irrelevância humana?

Parte da paralização geral significa que ninguém grava, ninguém dá entrevista, ninguém faz premiere, ninguém faz nada. Barbie e Oppenheimer terão que contar com o boca-a-boca, por isso estavam atropelando Tom Cruise nos tapetes vermelhos sem dar a ele o espaço (ou cortesia) de ter ‘sua’ exclusividade na divulgação de MI7. As séries como House of the Dragon, gravadas fora dos Estados Unidos, não param porque não estão legalmente no território onde a discussão está acontecendo, mas lembrando que vivemos a globalização e a questão não é exclusivamente americana, é melhor acompanhar. Sim, porque significa que em poucos meses não teremos “nada novo” para assistir. Tipo o que aconteceu no final de 2020 e que deu prejuízo de bilhões de dólares aos mesmos estúdios que alegam que é cedo demais para discutirem divisão de receitas. Sempre é uma questão de dinheiro.

Sabemos que Netflix, que investiu (por outras razões) em quebrar o monopólio da língua inglesa com conteúdos de outros países, criando como regra a régua de filmes e séries que ‘viajam’, vai estar bem. Sua estratégia de lançamento mensal é constante, precisaria de uma paralização mundial de mais de seis meses para sentir o efeito (conta aleatória, tá? eles dizem que sobrevivem um ano completo sem sentir), o mesmo não se aplica às outras plataformas. Portanto os consumidores só deverão sentir a consequência da greve a partir do final de 2023, porque até lá há o que lançar, apenas não mais como divulgar com a presença dos talentos (estou pensando nas entrevistas que estava pra fazer…).

Enquanto os atores foram solidários aos escritores, o Sindicato dos Diretores contemplou se unir à eles, mas efetivamente escolheu como classe não paralisar, afinal resolveram a ratificação deles à parte. Como mencionei, a negociação coletiva deve revisar a divisão de royalties (que o streaming interferiu diretamente, reduzindo consideravelmente o resultado) assim como as oportunidades de trabalho ameaçadas com o uso frequente de IA. A meta e por isso é tão relevante acompanhar a discussão, não é impedir o que já está no nosso cotidiano (a tecnologia generalizada), mas reforço a palavra – reequilibrar – minimamente a balança, de forma que os trabalhadores não percam sentido e tenham ainda alguma oportunidade. Escrever sobre a maioria contra a elite no dia 14 de julho é de dar frio na espinha. Uma guilhotina não resolve aqui. O que é urgente é trazer alternativa que não beneficie apenas ao patrão.

Tudo isso acontece em quase 100 anos de um modelo de negócio inalterado, praticamente. Quando o streaming arranhou o mercado, muitos executivos se mantiveram fiéis à conclusão que as regras estabelecidas são as únicos que tornam a Arte viável comercialmente. Acompanhando as fusões e os cancelamentos de séries que não performam confirmam esse argumento, afinal foi apenas uma questão de tempo para ajustar as medidas, dessa vez por meio de algoritmos, para determinar a lucratividade dos negócios. Assinaturas não sustentam produções cada vez mais luxuosas, precisam de comerciais para pagar boa parte da conta, mas revisar a divisão do que entra, que no momento só compensa o investimento, não era para estar na mesa ainda. Estaria um dia?

Lembrando que o problema não tem dois anos, mas mais de 20, quando os sinais da distribuição digital sugeriram que havia alternativas mais rápidas e baratas para fazer dinheiro, tirando receita da distribuição do cinema, dos vídeos domésticos e até do cabo premium. O que os estúdios sabem é que o vilão do streaming não rendeu o dinheiro imaginado e já se ajustou no mercado, tirando as fatias de vídeo e cinema, mas deixando os chefes ainda no comando e com seus bônus. Infelizmente o que se pede nem é distribuir riqueza, querem garantias de distribuição decente de valores, para garantir a sobrevivência. O que está em pauta, de alguma forma, é reduzir a toxidade do mercado. Mas é entrar com flores em uma mesa onde estão canhões.

O que parece é que a Alliance of Motion Picture and Television Producers (AMPTP) não está remotamente interessada em considerar a questão. Antes dos atores aderirem, as notas divulgadas eram de que os executivos queriam deixar os roteiristas “passarem fome” para começar a conversa. Acho que esqueceram que cada dia mais os próprios astros estão assumindo outras funções. A coisa ficou muito feia agora.

Tecnicamente a IA pode sim assumir muitos lugares hoje ocupados exclusivamente por humanos, pedir uma reflexão para estabelecer regras não é nada além de razoável. A conclusão dessa greve vai impactar outras indústrias e negociações trabalhistas, sem dúvida. Estamos testemunhando uma revolução inédita, algo fascinante e apavorante. Hollywood, sempre ela, traz glamour e holofotes para o problema, mas de longe não é nem a única ou a principal de ter que lidar com a questão. Por isso, quando vi fãs celebrando que House of the Dragon não será afetada pela greve, me deu um nó no coração. Isso não é bom.

A crise com a AMPTP, que negocia os contratos de trabalho, é mais do que real. Greve sempre é a última opção, seguir com ela por mais de 70 dias significa que já tem gente passando fome e não está no horizonte uma alternativa próxima. Li em um artigo a citação do que David Letterman disse em 2008, quando houve a greve dos roteiristas: “Depois de meses ouvindo sobre como é terrível que os escritores queiram ser pagos, para poder se sustentar depois de fazer bilhões de dólares com todos esses estúdios e empresas de streaming, agora vamos ouvir sobre como os atores são péssimos por quererem salários justos”. Pois é. Se fala tanto em saúde mental, em sororidade, em um mundo menos tóxico e desacelerado. A hora é essa.


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